28.3.13


(...) Em dado instante, todavia, quando mal despertara das angustiosas cogitações, sente-se envolvido por luzes diferentes da tonalidade solar. Tem a impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob pressão invisível e poderosa. Íntimamente, considera-se presa de inesperada vertigem após o esforço mental, persistente e doloroso. Quer voltar-se, pedir o socorro dos companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o auxílio.
— Jacob!... Demétrio!... Socorram-me!... — gri­ta desesperadamente.
Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio e tomba do animal, ao desamparo, sobre a areia ardente. A visão, no entanto, parece dilatar-se ao infinito. Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados, e no caminho, que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de majestática beleza, dando-lhe a im­pressão de que descia do céu ao seu encontro. Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos ombros, à nazarena, os olhos magnéticos, imanados de simpatia e de amor, iluminando a fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.
O doutor de Tarso contemplava-o com espanto pro­fundo, e foi quando, numa inflexão de voz inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:
— Saulo!... Saulo!... por que me persegues?
O moço tarsense não sabia que estava instintivamente de joelhos. Sem poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude desesperada. Incoer­cível sentimento de veneração apossou-se inteiramente dele. Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de emoções desconhecidas?
Enquanto os companheiros cercavam o jovem ge­nuflexo, sem nada ouvirem nem verem, não obstante ha­verem percebido, a princípio, uma grande luz no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:
— Quem sois vós, Senhor?
Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de in­concebível doçura, o Senhor respondeu:
— Eu sou Jesus!...
Então, viu-se o orgulhoso e inflexível doutor da Lei curvar-se para o solo, em pranto convulsivo. Dir-se-ia que o apaixonado rabino de Jerusalém fora ferido de morte, experimentando num momento a derrocada de todos os princípios que lhe conformaram o espírito e o nortearam, até então, na vida. Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele Cristo magnânimo e incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam iludidos! A palavra de Estevão era a verdade pura! A crença de Abigail era a senda real. Aquele era o Messias! A his­tória maravilhosa da sua ressurreição não era um recurso lendário para fortificar as energias do povo. Sim, ele, Saulo, via-o ali no esplendor de suas glórias divinas! E que amor deveria animar-lhe o coração cheio de augusta misericórdia, para vir encontrá-lo nas estradas desertas, a ele, Saulo, que se arvorara em perseguidor implacável dos discípulos mais fiéis!. .. Na expressão de sinceridade da sua alma ardente, considerou tudo isso na fugacidade de um minuto. Experimentou invencível vergonha do seu passado cruel. Uma torrente de lágrimas impetuosas lavava-lhe o coração. Quis falar, penitenciar-se, clamar suas infindas desilusões, protestar fidelidade e dedicação ao Messias de Nazaré, mas a contrição sincera do espí­rito arrependido e dilacerado embargava-lhe a voz.
Foi quando notou que Jesus se aproximava e, contem­plando-o carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os ombros com ternura, dizendo com inflexão paternal:
— Não recalcitres contra os aguilhões!...
Saulo compreendeu. Desde o primeiro encontro com Estevão, forças profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação dos novos ensinamen­tos. O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os modos.
Sem que pudessem entender a grandeza divina da­quele instante, os companheiros de viagem viram-no cho­rar mais copiosamente.
O moço de Tarso soluçava. Ante a expressão doce e persuasiva do Messias Nazareno, considerava o tempo perdido em caminhos escabrosos e ingratos. Doravante necessitava reformar o patrimônio dos pensamentos mais íntimos; a Visão de Jesus ressuscitado, aos seus olhos mortais, renovava-lhe integralmente as concepções reli­giosas. Certo, o Salvador apiedara-se do seu coração leal e sincero, consagrado ao serviço da Lei, e descera da sua glória estendendo-lhe as mãos divinas. Ele, Saulo, era a ovelha perdida no resvaladouro das teorias escal­dantes e destruidoras. Jesus era o Pastor amigo que se dignava fechar os olhos para os espinheiros ingratos, a fim de salvá-lo carinhosamente. Num ápice, o jovem rabino considerou a extensão daquele gesto de amor. As lágrimas brotaram-lhe do coração amargurado, como a linfa pura, de uma fonte desconhecida. Ali mesmo, no santuário augusto do espírito, fez o protesto de entre­gar-se a Jesus para sempre. Recordou, de súbito, as provações rígidas e dolorosas. A idéia de um lar morrera com Abigail. Sentia-se só e acabrunhado. Doravante, porém, entregar-se-ia ao Cristo, como simples escravo do seu amor. E tudo envidaria para provar-lhe que sabia compreender o seu sacrifício, amparando-o na senda es­cura das iniqüidades humanas, naquele instante decisivo do seu destino. Banhado em pranto, como nunca lhe acontecera na vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assom­brado dos companheiros e ao calor escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.
— Senhor, que quereis que eu faça?
Aquela alma resoluta, mesmo no transe de uma capitulação incondicional, humilhada e ferida em seus princípios mais estimáveis, dava mostras de sua nobreza e lealdade. Encontrando a revelação maior, em face do amor que Jesus lhe demonstrava solícito, Saulo de Tarso não escolhe tarefas para servi-lo, na renovação de seus esforços de homem. Entregando-se-lhe de alma e corpo, como se fora ínfimo servo, interroga com humildade o que desejava o Mestre da sua cooperação. (...)
 
Livro: Paulo e Estevão - Francisco C Xavier - Emmanuel

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