(...) Em dado instante, todavia, quando mal
despertara das angustiosas cogitações, sente-se envolvido por luzes diferentes
da tonalidade solar. Tem a impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob
pressão invisível e poderosa. Íntimamente, considera-se presa de inesperada
vertigem após o esforço mental, persistente e doloroso. Quer voltar-se, pedir o
socorro dos companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o
auxílio.
— Jacob!... Demétrio!... Socorram-me!... — grita
desesperadamente.
Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio
e tomba do animal, ao desamparo, sobre a areia ardente. A visão, no entanto,
parece dilatar-se ao infinito. Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados, e no
caminho, que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de
majestática beleza, dando-lhe a impressão de que descia do céu ao seu encontro.
Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos ombros, à
nazarena, os olhos magnéticos, imanados de simpatia e de amor, iluminando a
fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.
O doutor de Tarso
contemplava-o com espanto profundo, e foi quando, numa inflexão de voz
inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:
— Saulo!... Saulo!... por que me
persegues?
O moço tarsense não sabia que estava instintivamente de joelhos.
Sem poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude
desesperada. Incoercível sentimento de veneração apossou-se inteiramente dele.
Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do
firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de emoções
desconhecidas?
Enquanto os companheiros cercavam o jovem genuflexo, sem nada
ouvirem nem verem, não obstante haverem percebido, a princípio, uma grande luz
no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:
— Quem sois vós,
Senhor?
Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de inconcebível doçura, o
Senhor respondeu:
— Eu sou Jesus!...
Então, viu-se o orgulhoso e
inflexível doutor da Lei curvar-se para o solo, em pranto convulsivo. Dir-se-ia
que o apaixonado rabino de Jerusalém fora ferido de morte, experimentando num
momento a derrocada de todos os princípios que lhe conformaram o espírito e o
nortearam, até então, na vida. Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele
Cristo magnânimo e incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam
iludidos! A palavra de Estevão era a verdade pura! A crença de Abigail era a
senda real. Aquele era o Messias! A história maravilhosa da sua ressurreição
não era um recurso lendário para fortificar as energias do povo. Sim, ele,
Saulo, via-o ali no esplendor de suas glórias divinas! E que amor deveria
animar-lhe o coração cheio de augusta misericórdia, para vir encontrá-lo nas
estradas desertas, a ele, Saulo, que se arvorara em perseguidor implacável dos
discípulos mais fiéis!. .. Na expressão de sinceridade da sua alma ardente,
considerou tudo isso na fugacidade de um minuto. Experimentou invencível
vergonha do seu passado cruel. Uma torrente de lágrimas impetuosas lavava-lhe o
coração. Quis falar, penitenciar-se, clamar suas infindas desilusões, protestar
fidelidade e dedicação ao Messias de Nazaré, mas a contrição sincera do
espírito arrependido e dilacerado embargava-lhe a voz.
Foi quando notou que
Jesus se aproximava e, contemplando-o carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os
ombros com ternura, dizendo com inflexão paternal:
— Não recalcitres contra
os aguilhões!...
Saulo compreendeu. Desde o primeiro encontro com Estevão,
forças profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação
dos novos ensinamentos. O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os
modos.
Sem que pudessem entender a grandeza divina daquele instante, os
companheiros de viagem viram-no chorar mais copiosamente.
O moço de Tarso
soluçava. Ante a expressão doce e persuasiva do Messias Nazareno, considerava o
tempo perdido em caminhos escabrosos e ingratos. Doravante necessitava reformar
o patrimônio dos pensamentos mais íntimos; a Visão de Jesus ressuscitado, aos
seus olhos mortais, renovava-lhe integralmente as concepções religiosas. Certo,
o Salvador apiedara-se do seu coração leal e sincero, consagrado ao serviço da
Lei, e descera da sua glória estendendo-lhe as mãos divinas. Ele, Saulo, era a
ovelha perdida no resvaladouro das teorias escaldantes e destruidoras. Jesus
era o Pastor amigo que se dignava fechar os olhos para os espinheiros ingratos,
a fim de salvá-lo carinhosamente. Num ápice, o jovem rabino considerou a
extensão daquele gesto de amor. As lágrimas brotaram-lhe do coração amargurado,
como a linfa pura, de uma fonte desconhecida. Ali mesmo, no santuário augusto do
espírito, fez o protesto de entregar-se a Jesus para sempre. Recordou, de
súbito, as provações rígidas e dolorosas. A idéia de um lar morrera com Abigail.
Sentia-se só e acabrunhado. Doravante, porém, entregar-se-ia ao Cristo, como
simples escravo do seu amor. E tudo envidaria para provar-lhe que sabia
compreender o seu sacrifício, amparando-o na senda escura das iniqüidades
humanas, naquele instante decisivo do seu destino. Banhado em pranto, como nunca
lhe acontecera na vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assombrado dos companheiros
e ao calor escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.
— Senhor,
que quereis que eu faça?
Aquela alma resoluta, mesmo no transe de uma
capitulação incondicional, humilhada e ferida em seus princípios mais
estimáveis, dava mostras de sua nobreza e lealdade. Encontrando a revelação
maior, em face do amor que Jesus lhe demonstrava solícito, Saulo de Tarso não
escolhe tarefas para servi-lo, na renovação de seus esforços de homem.
Entregando-se-lhe de alma e corpo, como se fora ínfimo servo, interroga com
humildade o que desejava o Mestre da sua cooperação. (...)
Livro: Paulo e Estevão - Francisco C Xavier -
Emmanuel
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