1.10.13


A DESENCARNAÇÃO DE “INÁCIO”, O GATO

Sei que ao lerem as palavras acima, muitos imaginarão, talvez, que eu esteja me referindo à minha “segunda morte”... Nada disto.
Para muitos outros, o equívoco que o título acima haverá de ensejar, será, com certeza, decorrente de mera questão de natureza gramatical, estabelecendo a confusão que liga o nome que me é próprio ao adjetivo que me é comum: “Inácio” e “gato”! Também não se trata disto.
Estou me referindo, ipsis literis, à desencarnação de “Inácio”, o gato espírita que, durante muitos anos, frequentou as reuniões, inclusive mediúnicas, da Casa Espírita “Bittencourt Sampaio”, em Uberaba.
Ele era um gato malhado, que, sinceramente, de vez que não era vegetariano, eu não saberia dizer quantos ratos já havia devorado ao longo de sua proveitosa encarnação – todavia, posso afirmar que, desde muito, ele já havia gasto todas as suas sete vidas, escapando das rodas de motos, carros e caminhões, que, como um tornado, costumam passar pela Rua Capitão Domingos, e, de resto, pelas movimentadas vias da cidade, quase que uma campeã de atropelamentos no Brasil.
Creio, de minha parte, que nenhum dos motoristas de veículos em nosso país tenha tido, em qualquer de suas vidas anteriores, alguma experiência como jainista, porque os fieis seguidores de Mahavira não cometeriam a maldade que esses delinquentes do trânsito cometem sob o beneplácito da lei.
Os jainistas respeitam tanto a vida dos seres vivos em geral que, até quando tomam água, costumam coá-la em um pano, a fim de não acontecer que, involuntariamente, venham a ingerir um deles... Mas, ah, nem jainistas se fazem mais como antigamente!...
Deixando, porém, de lado esta minha frustração com o mundo moderno, que, com o seu materialismo, parece ter o dom de esculhambar com as coisas que transcendem, preciso dizer aos amigos lá do “Bittencourt Sampaio” que eu não deixei o meu xará desamparado...
Não pude, claro – e por isto me penitencio –, chegar a tempo de fazer com que o motorista do carro desse uma pequena guinada na direção ou, então, pelo menos, acionasse os freios do veículo, evitando o atropelamento fatal do bichano, que, ao brilho dos faróis, feito um ancião repleto de artrose, ficou sem ação no meio da rua.
Com a velocidade que vinha, ele passou por cima do meu xará e o deixou estirado ao chão, de coluna partida, como se não fosse mais que desprezível massa de carne sanguinolenta. Duvido que ele sequer tenha ficado com algum drama de consciência!
Cheguei quando o “Inácio”, em estado de agonia, se esforçava para deixar a carcaça, qual eu mesmo, tempos atrás, envidara esforços para deixar a minha, e respirar sem aquele excessivo peso em meus pulmões congestionados.
Peguei-o no colo e ele, virando a cabeça com dificuldade, ronronou para mim, ensaiando lamber-me as mãos, sem conseguir detectar, pela sua “vidência”, de que Lado da Vida eu me situava naquele instante.
- Venha comigo, meu caro – disse-lhe eu, acariciando o seu pelo e auxiliando-o a se libertar dos últimos laços que ainda o prendiam ao corpo de felino.
Imagino que, sentindo o meu cheiro e ouvindo a minha voz, ele deve ter pensado assim: - Opa! Estou em casa! Este cheiro não me é totalmente desconhecido ao olfato apurado, e este miado se parece com o miado de um parente meu que há muito não vejo...
Eu sei dizer a vocês que, justamente quando outro carro se aproximava para, com as suas rodas impiedosas, lhe desferir o golpe de misericórdia, deixei que ele adormecesse em meus braços e parti, não sem antes lhe sussurrar:
- Como não sou muçulmano, não posso lhe prometer o Paraíso, com sete virgens a esperar por você... Todavia, na condição de espírita nada ortodoxo, posso lhe dizer que, numa gata angorá, tenho uma namorada linda, que vale por sete, à sua espera!...

INÁCIO FERREIRA
Uberaba – MG, 30 de setembro de 2013

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