A DESENCARNAÇÃO DE “INÁCIO”, O GATO
Sei que ao
lerem as palavras acima, muitos imaginarão, talvez, que eu esteja me referindo à
minha “segunda morte”... Nada disto.
Para muitos outros, o equívoco que o
título acima haverá de ensejar, será, com certeza, decorrente de mera questão de
natureza gramatical, estabelecendo a confusão que liga o nome que me é próprio
ao adjetivo que me é comum: “Inácio” e “gato”! Também não se trata
disto.
Estou me referindo, ipsis literis, à desencarnação de “Inácio”, o gato
espírita que, durante muitos anos, frequentou as reuniões, inclusive mediúnicas,
da Casa Espírita “Bittencourt Sampaio”, em Uberaba.
Ele era um gato malhado,
que, sinceramente, de vez que não era vegetariano, eu não saberia dizer quantos
ratos já havia devorado ao longo de sua proveitosa encarnação – todavia, posso
afirmar que, desde muito, ele já havia gasto todas as suas sete vidas, escapando
das rodas de motos, carros e caminhões, que, como um tornado, costumam passar
pela Rua Capitão Domingos, e, de resto, pelas movimentadas vias da cidade, quase
que uma campeã de atropelamentos no Brasil.
Creio, de minha parte, que nenhum
dos motoristas de veículos em nosso país tenha tido, em qualquer de suas vidas
anteriores, alguma experiência como jainista, porque os fieis seguidores de
Mahavira não cometeriam a maldade que esses delinquentes do trânsito cometem sob
o beneplácito da lei.
Os jainistas respeitam tanto a vida dos seres vivos em
geral que, até quando tomam água, costumam coá-la em um pano, a fim de não
acontecer que, involuntariamente, venham a ingerir um deles... Mas, ah, nem
jainistas se fazem mais como antigamente!...
Deixando, porém, de lado esta
minha frustração com o mundo moderno, que, com o seu materialismo, parece ter o
dom de esculhambar com as coisas que transcendem, preciso dizer aos amigos lá do
“Bittencourt Sampaio” que eu não deixei o meu xará desamparado...
Não pude,
claro – e por isto me penitencio –, chegar a tempo de fazer com que o motorista
do carro desse uma pequena guinada na direção ou, então, pelo menos, acionasse
os freios do veículo, evitando o atropelamento fatal do bichano, que, ao brilho
dos faróis, feito um ancião repleto de artrose, ficou sem ação no meio da
rua.
Com a velocidade que vinha, ele passou por cima do meu xará e o deixou
estirado ao chão, de coluna partida, como se não fosse mais que desprezível
massa de carne sanguinolenta. Duvido que ele sequer tenha ficado com algum drama
de consciência!
Cheguei quando o “Inácio”, em estado de agonia, se esforçava
para deixar a carcaça, qual eu mesmo, tempos atrás, envidara esforços para
deixar a minha, e respirar sem aquele excessivo peso em meus pulmões
congestionados.
Peguei-o no colo e ele, virando a cabeça com dificuldade,
ronronou para mim, ensaiando lamber-me as mãos, sem conseguir detectar, pela sua
“vidência”, de que Lado da Vida eu me situava naquele instante.
- Venha
comigo, meu caro – disse-lhe eu, acariciando o seu pelo e auxiliando-o a se
libertar dos últimos laços que ainda o prendiam ao corpo de felino.
Imagino
que, sentindo o meu cheiro e ouvindo a minha voz, ele deve ter pensado assim: -
Opa! Estou em casa! Este cheiro não me é totalmente desconhecido ao olfato
apurado, e este miado se parece com o miado de um parente meu que há muito não
vejo...
Eu sei dizer a vocês que, justamente quando outro carro se aproximava
para, com as suas rodas impiedosas, lhe desferir o golpe de misericórdia, deixei
que ele adormecesse em meus braços e parti, não sem antes lhe sussurrar:
-
Como não sou muçulmano, não posso lhe prometer o Paraíso, com sete virgens a
esperar por você... Todavia, na condição de espírita nada ortodoxo, posso lhe
dizer que, numa gata angorá, tenho uma namorada linda, que vale por sete, à sua
espera!...
INÁCIO FERREIRA
Uberaba – MG, 30 de setembro de 2013
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