HÁ (mais de) UM SÉCULO
Livro: O Espírito da Verdade
- Francisco C. Xavier - Hilário Silva
Allan Kardec, o Codificador da
Doutrina Espírita, naquela triste manhã de abril de 1860, estava exausto,
acabrunhado.
Fazia frio.
Muito embora a consolidação da Sociedade Espírita
de Paris e a promissora venda de livros, escasseava o dinheiro para a obra
gigantesca que os Espíritos Superiores lhe haviam colocado nas mãos.
A
pressão aumentava...
Missivas sarcásticas avolumavam-se à mesa.
Quando
mais desalentado se mostrava, chega a paciente esposa, Madame Rivail - a doce
Gaby -, a entregar-lhe certa encomenda, cuidadosamente apresentada.
O
professor abriu o embrulho, encontrando uma carta singela. E leu:
“Sr. Allan
kardec:
Respeitoso abraço.
Com a minha gratidão, remeto-lhe o livro anexo,
bem como a sua história, rogando-lhe, antes de tudo, prosseguir em suas tarefas
de esclarecimento da Humanidade, pois tenho fortes razões para isso.
Sou
encadernador desde a meninice, trabalhando em grande casa desta capital.
Há
cerca de dois anos casei-me com aquela que se revelou minha companheira
ideal.
Nossa vida corria normalmente e tudo era alegria e esperança, quando,
no início deste ano, de modo inesperado, minha Antoinette partiu desta vida,
levada por sorrateira moléstia.
Meu desespero foi indescritível e julguei-me
condenado ao desamparo extremo.
Sem confiança em Deus, sentindo as
necessidades do homem do mundo e vivendo com as dúvidas aflitivas de nosso
século, resolvera seguir o caminho de tantos outros, ante a fatalidade...
A
prova da separação vencera-me, e eu não passava, agora, de trapo
humano.
Faltava ao trabalho e meu chefe, reto e ríspido, ameaçava-me com a
dispensa.
Minhas forças fugiam.
Namorava diversas vezes o Rio Sena e
acabei planejando o suicídio.
“Seria fácil, não sei nadar” –
pensava.
Sucediam-se noites de insônia e dias de angústia.
Em madrugada
fria, quando as preocupações e o desânimo me dominaram mais fortemente, busquei
a Ponte Marie.
Olhei em torno, contemplando a corrente...
E, ao fixar a
mão direita para atirar-me, toquei um objeto algo molhado que se deslocou da
amurada, caindo-me aos pés.
Surpreendido, distingui um livro que o orvalho
umedecera.
Tomei o volume nas mãos e, procurando a luz mortiça de poste
vizinho, pude ler, logo no frontispício, entre irritado e curioso.
“Esta obra
salvou-me a vida. Leia-a com atenção e tenha bom proveito. - A.
Laurent.”
Estupefato, li a obra - O Livro dos Espíritos - ao qual acrescentei
breve mensagem, volume esse que passo às suas mãos abnegadas, autorizando o
distinto amigo a fazer dele o que lhe aprouver.
Ainda constavam da mensagem
agradecimentos finais, a assinatura, a data e o endereço do remetente.
O
Codificador desempacotou, então, um exemplar de O Livro dos Espíritos ricamente
encadernado, em cuja capa viu as iniciais do seu pseudônimo e na página do
frontispício, levemente manchada, leu com emoção não somente a observação a que
o missivista se referira, mas também outra, em letra firme: “Salvou-me também.
Deus abençoe as almas que cooperaram em sua publicação. - Joseph
Perrier.”
Após a leitura da carta providencial, o Professor Rivail
experimentou nova luz a banhá-lo por dentro...
Conchegando o livro ao peito,
raciocinava, não mais em termos de desânimo ou sofrimento, mas sim na pauta de
radiosa esperança.
Era preciso continuar, desculpar as injúrias, abraçar o
sacrifício e desconhecer as pedradas...
Diante de seu espírito turbilhonava o
mundo necessitado de renovação e consolo.
Allan Kardec levantou-se da velha
poltrona, abriu a janela à sua frente, contemplando a via pública, onde passavam
operários e mulheres do povo, crianças e velhinhos...
O notável obreiro da
Grande Revelação respirou a longos haustos, e, antes de retomar a caneta para o
serviço costumeiro, levou o lenço aos olhos e limpou uma lágrima...
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