Cento e trinta e dois anos
depois da abolição da escravatura negra seria teoricamente perda de tempo
examinar resquícios daquela realidade desigual na sociedade brasileira. Não é.
Ainda há focos de discriminação e racismo em muitas áreas. Numa, em especial,
parece prescindir da necessidade da adoção de uma espécie de segunda abolição
da condição negra: os ambientes espirituais das casas espíritas.
O ambiente doutrinário das
casas espíritas, de maneira geral, não abriga a presença dos “espíritos dos
negros” nas suas práticas mediúnicas, há, em muitos casos, uma discriminação
velada associando-os a atraso intelectual e moral, quando não à qualidade de
entidades obsessoras. Duas razões básicas podem ser atribuídas a este
comportamento equivocado: preconceito cultural e ignorância doutrinária.
PROMOVENDO UMA MUDANÇA
CULTURAL
Etnocentrismo é o conceito
utilizado para definir o comportamento da pessoa que vê o mundo através da sua
cultura e tende a considerar o seu modo de vida como o mais correto e natural.
Enxerga a realidade pelas lentes das suas próprias concepções e aquilo que foge
ao padrão aceitável na comunidade na qual está inserida tende a discriminar o
comportamento. Este fenômeno cultural é transferido para os ambientes espíritas
à medida que se caracterizou como inferior as matrizes de manifestação
espiritual dos negros do ponto de vista evolutivo.
Herdou-se, na prática, a
concepção de uma elite que considera cultura superior aquela que viesse de
“povos culturalmente mais desenvolvidos”, como a Europa, por exemplo. A ideia
de elite cultural ocidental foi transplantada também para as sessões mediúnicas
das casas espíritas, onde espíritos de intelectuais, profissionais liberais e
padres, todos brancos, representariam uma condição espiritual igualmente
superior. Os negros, ex-escravos, são considerados os selvagens, com práticas
espirituais associadas à feitiçaria, necessitados assim da “catequização”, ou
melhor, da doutrinação espírita.
Onde está a raiz deste
desencontro cultural? Há uma data marcada que pode simbolizar o rompimento da
possível convivência espiritual negra nos ambientes espíritas: 15 de novembro
de 1908 - data de criação da Umbanda.
Zélio de Moraes, um jovem
de 17 anos, estava psiquicamente perturbado. Era afetado por mudança de
personalidade repentina quando através dele outras pessoas (mortas) se
expressavam. Levado a então Federação Espírita de Niterói por seu pai, de
convicção espírita, incorporou, na sessão mediúnica, uma entidade que se
denominava Caboclo das Sete Encruzilhadas. Sua postura foi rechaçada pelos
presentes, apesar de ser reconhecido, pela vidência mediúnica, na figura de um
padre. Depois do episódio, no dia seguinte, a entidade funda a Umbanda, espaço
onde os espíritos dos pretos-velhos africanos, que haviam sido escravos, e os
índios, além de espíritos de qualquer cor, raça, credo ou posição social,
poderiam se apresentar para a convivência espiritual partilhada.
Como seria o Espiritismo no
Brasil se tivesse ocorrido uma convergência de interesses entre
os representantes da doutrina espírita da época e as identidades
espirituais da matriz cultural local?
Este
questionamento se torna pertinente porque a filosofia espírita,
recém-introduzida no País no século 20, trazia, entre seus protagonistas
espirituais, personalidades de identidade cristã (João Evangelista, Erasto,
Paulo etc.), de identidade católica (Fénelon, Santo Agostinho, São Luis etc.) e
de identidade europeia (Sansão, Pascal etc.). Nada mais natural, afinal, esta
era a matriz de cultura espiritual que Allan Kardec encontrou, já que foi
lá, especialmente na França, a sua origem. O que não era razoável conceber – e foi o que predominou – é que esta matriz espiritual fosse
considerada superior à matriz espiritual brasileira formada por negros e índios
– e também os portugueses.
Neste embate, infelizmente, preponderou o viés cultural. Ontem e ainda hoje.
SUPERANDO A IGNORÂNCIA
DOUTRINÁRIA
É compreensível, portanto,
que o ambiente cultural do País tenha influenciado o comportamento das casas
espíritas, mas não se justifica, porém, que ela tenha se mantido, e o que é
pior, que este equívoco doutrinário permaneça atualmente.
Em “O
Livro dos Espíritos”, Allan Kardec indaga aos espíritos sistematizadores da
filosofia espírita se “um
homem que pertence a uma raça civilizada poderia, por expiação, reencarnar em
uma raça selvagem?”. Eles asseveraram que isso é
possível e que ocorre em função do gênero de expiação. Adiantam o que veio a
acontecer com frequência no Brasil fruto do nosso passado escravocrata,
esclarecendo que “um senhor
que tenha sido cruel com seus escravos poderá tornar-se escravo por sua vez e
sofrer os maus-tratos que fez os outros suportar.” Além
desta condição expiatória, a reencarnação pode se dar como uma missão com a
finalidade de ajudar o progresso.
Fica evidente, portanto,
que os espíritos aproveitam as diversas situações para promover a evolução, em
qualquer raça, em qualquer situação, em qualquer época, sendo um contrassenso
generalizar como inferior tudo que venha da chamada raça selvagem.
No livro
“A Gênese”, Allan Kardec esclarece sobre outro aspecto igualmente interessante:
a mudança da aparência astral. É pelo pensamento e pela vontade que os
espíritos podem modificar, segundo sua intenção, a sua aparência espiritual.
Textualmente, chega a afirmar que se um espírito “foi negro (numa encarnação) e branco na
outra, apresentar-se-á como branco ou negro, conforme a encarnação a que se
refira a sua evocação e à que se transporte o seu pensamento.”
Às vezes, mesmo que um
espírito não tenha tido uma encarnação na pele negra, por este mecanismo de
mudança de aparência astral, ele, se quiser, poderia se apresentar como um
negro para atingir um objetivo específico, como é o caso dos chamados
pais-velhos.
O termo
Pai-velho talvez seja o mais apropriado para se referir aos espíritos que
povoam as mesas mediúnicas espíritas – quando permitem que se apresentem. Os pais-velhos,
geralmente, são espíritos iniciados de antigas civilizações e exatamente por
causa disso são respeitados pelos espíritos das sombras pelo seu domínio do
conhecimento do magnetismo e do ectoplasma, e pela sua capacidade de atuar em
desmanche de magia negra. Apresentam-se nesta forma astral para
lembrar, no arcabouço atávico da população, a figura de alguém humilde,
sábio, simples e experiente. Mais: esta aparência serve para combater o preconceito,
quebrar barreiras raciais, religiosas, espirituais e sociais. De acordo com
suas especializações espirituais e sua descendência de raiz cultural recebem
sobrenomes diferenciados como do Congo, de Aruanda, de Angola, das Matas, das
Almas etc.
FRATERNIDADE E ALTERIDADE
NAS RELAÇÕES
Para se vencer o
preconceito cultural e a ignorância doutrinária nos meios espíritas é
imprescindível a vivência de duas condutas: a fraternidade e a alteridade.
Na dimensão dos espíritos,
apesar de se agruparem por suas afinidades e identidades espirituais, o que
prevalece é o compromisso no bem. Neste sentido, as divisões religiosas,
raciais ou outras quaisquer, não têm a menor importância. Importa para eles é estar
juntos para a prática do amor, numa relação fraterna. Espíritos ligados aos
movimentos umbandistas, evangélicos, espíritas, católicos etc. dividem sua
atuação em igrejas, templos, casas espíritas e tendas para ajudar ao próximo.
Tudo pelo Cristo e pela urgência atual do período de transição planetária que
se atravessa.
O filósofo
espírita José Herculano Pires, em “Ciência Espírita”, defende que “Negros e índios têm o mesmo direito de
colaborar nesta hora de transição, como brancos e amarelos. Mas sem a
orientação segura do pensamento doutrinário, nas bases sólidas, lógicas e
altamente culturais de Kardec, estaremos ameaçados de cair nos barrancos do
caminho pelas mãos pretensiosas de cegos condutores de cegos.”
No caminho
das relações alteritárias, o da convivência harmoniosa e construtiva entre os
diferentes, oportuna é a observação do Pai João de Aruanda, no livro “Negro”,
de Robson Pinheiro, principalmente para aqueles que temem uma suposta confusão
entre o Espiritismo e a Umbanda, uma vez que é na Umbanda onde é mais comum a
manifestação dos “pretos e pretas”: “Em matéria de espiritualismo, Umbanda ou Espiritismo, o que mais
vale é a bandeira do amor e da caridade, sem preconceitos. União sem fusão,
distinção sem separação.”
Em “Casa Grande &
Senzala”, o sociólogo Gilberto Freyre tenta desmistificar a ideia de que no
Brasil se teria uma raça inferior em função da miscigenação que aqui foi
estabelecida, ao contrário, atribui a este fenômeno um ponto positivo na
formação cultural brasileira, que é a sua singularidade. A transposição deste
raciocínio é fundamental para o ambiente espírita à medida que resgata esta
identidade espiritual vinda da África e que ganhou contornos próprios nesta
terra que se propõe a ser o coração do mundo e a pátria do Evangelho.
A edificação da referência
da práxis evangélica para a humanidade somente ocorrerá, no entanto, se
criarmos um ambiente de convivência focada na inclusão, no respeito às
diferenças, na prática real do amor. E amor, definitivamente, não se conjuga
com preconceitos.
Saravá!
Carlos Pereira
De