6.12.19

Não Tenho Medo da Morte


O grande Gilberto Gil apresenta-nos uma bela reflexão sobre a morte e o morrer nesta música que chega a ser intimista. É o seu jeito próprio de encarar a morte e nisso vai todo o meu respeito. Peço permissão a ele para, aproveitando a letra, fazer uma análise sob a ótica da filosofia espírita.

Não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar

Não há preocupação dele com o depois da morte, mas com a morte em vida e com a dor que antecipa a morte. Eis a diferença que ele evoca e aí reside seu medo. A morte em vida é preocupante e pode ocorrer com qualquer pessoa em qualquer momento da sua jornada terrena. É quando falta a alegria de viver, perde-se o ânima, a vontade de enfrentar a vida. Muitas pessoas que passam por períodos de depressão sofrem a morte  por algum tempo. Morte em vida é terrível, mas pode se renascer do fundo do poço e novamente ganhar vida.
A outra face da morte é representada na dor que pode levar ao sofrimento. “A dor é inevitável, o sofrimento é uma opção”, alguém já ensinou. De fato, a dor existe para mandar um sinal e se entendemos este alerta ela passa a ter um significado especial de aprendizado, pois se tira a lição. Quando, porém, insiste-se em ignorar o recado da dor ela se transforma em sofrimento. Ter uma doença que passe a viver de maneira vegetativa, dependente, como o Mal de Alzheimer ou Parkinson, por exemplo, entre tantas. O medo de depender de outrem para viver – ou sobreviver. Às vezes, a cabeça ainda está viva, mas o organismo já faleceu ou não dá mais as respostas de antes. Neste instante, importa, igualmente, perguntar: por quê? Ao encontrar as respostas, dar outra direção à vida que possui, na condição adversa que for.
A morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem figado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

Gil, depois da morte, haverá sim alguém como a gente. Mesmo no além, haverá pessoas a pensar num outro além. Seja em dimensões mais superiores onde estão, seja na vida física que muitos imaginam nem existir, pois acreditam que a vida que vivem é a única vida, a vida verdadeira.
Teremos pé, cabeça, fígado, pulmão, coração... A matriz espiritual, o corpo etérico, e até mesmo o corpo astral, são constituídos dos órgãos que aqui possuímos. Natural que seja assim haja vista que na ocasião da reencarnação tais órgãos e seus respectivos sistemas de funcionamento estariam atrofiados. O espírito, pelo menos na condição de elevação mais próxima da nossa, não é amorfo, um lençol branco com dois buraquinhos made in fantasminha camarada. É uma réplica do que somos aqui. De lá é que se moldam as formas que utilizamos na vida física.

Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte e depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

Efetivamente este é um momento especial para todos, mesmo para os espiritualistas. Deixar o corpo físico e fluir é algo inicialmente impactante até novamente se adaptar na dimensão espiritual. O derradeiro ato representa o final de uma experiência encarnatória. O que fez está feito, o que não se fez agora somente noutra oportunidade no corpo físico. Para muitos, o mistério do depois. Para outros, a descoberta que não se findará o seu existir. E assim o destino particular de cada um segundo as suas obras. É um momento solitário qual o nascer. Pode-se ter uma multidão acompanhando, mas como diz a bela música de Dominguinhos e Nando Cordel: “quem me levará sou eu, quem regressará sou eu”. A consciência do mundo espiritual, neste ponto, facilita bastante neste ato final.

Então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.

Tal vida, tal morte! O que se perde, tão-somente, é o corpo físico. Um choque será para quem nada imaginava encontrar depois da sepultura. Um piripaque em encontrar um ambiente repulsivo e companhias indesejadas. Um baque em constatar que tudo continuou exatamente como era por aqui e que poderia ter dado ouvidos às notícias da sobrevivência e da imortalidade do ser, no mínimo, pesquisado mais um pouco, ter uma noção. Um calafrio ao se desprender do corpo físico e ver as pessoas ao seu redor sem que elas percebam você, apesar dos seus apelos e gritos. Ou um toque de despertamento, finalmente, por se encontrar numa forma de vida mais ampla e cheia de potencialidades do que esta aqui.
Saudade, Gil, há de ter. É isto que se guarda do sentimento que temos pelas pessoas que nos são queridas, pois isto não se acaba depois da morte. Saudade da casa, da família, do trabalho, das coisas boas que este mundo nos oferece. Saudade de tudo que fez, dos momentos felizes, das experiências interessantes.
O medo da morte é proporcional à consciência do dever cumprido.
O medo da morte é proporcional à consciência da realidade espiritual.
O medo da morte é proporcional à consciência do que é a vida.
Particularmente, não tenho medo da morte, mas concordo neste ponto com Gilberto Gil, tenho medo com a possibilidade de morrer ainda na vida física. Não ter mais sonhos, não ter mais projetos, não ter mais ideais, não ter mais amor por mim mesmo, não ter razão para viver, enfim.
A filosofia espírita espanta o medo da morte ao mostrar que a morte não existe. Ao demonstrar pela experiência mediúnica ou de desdobramento espiritual, por exemplo, que somos espíritos temporariamente em corpos carnais e, por natureza, indestrutíveis.
Na prática, o espírita promove, sem perceber, uma autoeducação para morte, exatamente por dar foco na vida, na vida infinita, no tempo contínuo, no kairós.
Morrer, na realidade, é voltar para casa.

Carlos Pereira – Blog do Carlos Pereira

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