19.4.19

FORÇAS VICIADAS

Caía a noite...
Após o dia quente, a multidão desfilava na via pública, evidentemente buscando o ar fresco.
Dirigimo-nos a outro templo espírita, em companhia de Áulus, segundo o nosso plano de trabalho, quando tivemos nossa atenção voltada para enorme gritaria.
Dois guardas arrastavam, de restaurante barato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.
O mísero esperneava e proferia palavras rudes, protestando, protestando...
- Observem o nosso infeliz irmão! - determinou o orientador.
E porque não havia muito tempo entre a porta ruidosa e o carro policial, pusemo-nos em observação.
Achava-se o pobre amigo abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.
Num átino, reparamos que a bebedeira alcançava os dois, porquanto se justapunham completamente um ao outro, exibindo as mesmas perturbações.
Em breves instantes, o veículo buzinou com pressa e não nos foi possível dilatar anotações.
- O quadro daria ensejo a valiosos apontamentos...
Ante a alegação de Hilário, o Assistente considerou que dispúnhamos de tempo bastante para a colheita de alguns registros interessantes e convidou-nos a entrar.
A casa de pasto regurgitava...
Muita alegria, muita gente.
Lá dentro, certo recolheríamos material adequado a expressivas lições.
Transpusemos a entrada.
As emanações do ambiente produziam em nós indefinível mal-estar.
Junto de fumantes e bebedores inveterados, criaturas desencarnadas de triste feição se demoravam expectantes.
Algumas sorviam as baforadas de fumo arremessadas ao ar, ainda aquecidas pelo calor dos pulmões que as expulsavam, nisso encontrando alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de alcoólatras impenitentes.
Indicando-nos, informou o orientador:
- Muitos de nossos irmãos, que já se desvencilharam do vaso carnal, se apegam com tamanho desvario às sensações da experiência física, que se cosem àqueles nossos amigos terrestres temporariamente desequilibrados nos desagradáveis costumes por que se deixam influenciar.
- Mas por que mergulhar, dessa forma, em prazeres dessa espécie?
- Hilário - disse o Assistente, bondoso -, o que a vida começou, a morte continua... Esses nossos companheiros situaram a mente nos apetites mais baixos do mundo, alimentando-se com um tipo de emoções que os localiza na vizinhança da animalidade. Não obstante haverem frequentado santuários religiosos, não se preocuparam em atender aos princípios da fé que abraçaram, acreditando que a existência devia ser para eles o culto de satisfações menos dignas, com a exaltação dos mais astuciosos e dos mais fortes. O chamamento da morte encontrou-os na esfera de impressões delituosas e escuras e, como é da Lei que cada alma receba da vida de conformidade com aquilo que dá, não encontram interesse se não nos lugares onde podem nutrir as ilusões que lhes são peculiares, porquanto, na posição em que se veem, temem a verdade e abominam-na, procedendo como a coruja que foge à luz.
Meu colega fez um gesto de piedade e indagou:
-          Entretanto, como se transformarão?
-          Chegará o dia em que a própria Natureza lhes esvaziará o cálice - respondeu Áulus, convicto. - Há mil processos de reajuste, no Universo Infinito em que se cumprem os Desígnios do Senhor, chamam-se eles aflição, desencanto, cansaço, tédio, sofrimento, cárcere...
-Contudo - ponderei -, tudo indica que esses Espíritos infortunados não se enfastiarão tão cedo da loucura em que se comprazem...
- Concordo plenamente - redarguiu o instrutor -, todavia, quando não se fatiguem, a Lei poderá conduzi-los a prisão regeneradora.
- Como?
A pergunta de Hilário ecoou, cristalina, e o Assistente deu-se pressa em explicar:
- Há dolorosas reencarnações que significam tremenda luta expiatória para as almas necrosadas no vício. Temos, por exemplo, o mongolismo, a hidrocefalia, a paralisia, a cegueira, a epilepsia secundária, o idiotismo, o aleijão de nascença e muitos outros recursos, angustiosos embora, mas necessários, e que podem funcionar, em benefício da mente desequilibrada, desde o berço, em plena fase infantil. Na maioria das vezes, semelhantes processos de cura prodigalizam bons resultados pelas provações obrigatórias que oferecem...
- No entanto - comentei -, e se os nossos irmãos encarnados, visivelmente confiados à devassidão, resolvessem reconsiderar o próprio caminho?!... se voltassem à regularidade, através da renovação mental com alicerces no bem?!...
- Ah! Isso seria ganhar tempo, recuperando a si mesmos e amparando com segurança os amigos desencarnados... Usando a alavanca da vontade, atingimos a realização de verdadeiros milagres... Entretanto, para isso, precisariam despender esforço heróico.
Observando os beberrões, cujas taças eram partilhadas pelos sócios que lhes eram invisíveis, Hilário recordou:
- Ontem, visitamos um templo, em que desencarnados sofredores se exprimiam por intermédio de criaturas necessitadas de auxílio, e ali estudamos algo sobre mediunidade... Aqui, vemos entidades viciosas valendo-se de pessoas que com elas se afinam numa perfeita comunhão de forças inferiores... Aqui, tanto quanto lá, seria lícito ver a mediunidade em ação?
- Sem qualquer dúvida - confirmou o orientador -; recursos psíquicos, nesse ou naquele grau de desenvolvimento, são peculiares a todos, tanto quanto o poder de locomoção ou a faculdade de respirar, constituindo forças que o Espírito encarnado ou desencarnado pode empregar no bem ou no mal de si mesmo. Ser médium não quer dizer que a alma esteja agraciada por privilégios ou conquistas feitas. Muitas vezes, é possível encontrar pessoas altamente favorecidas com o dom da mediunidade, mas dominadas, subjugadas por entidades sombrias ou delinquentes, com a s quais se afinam de modo perfeito, servindo ao escândalo e à perturbação, em vez de cooperarem na extensão do bem. Por isso é que não basta a mediunidade para a concretização dos serviços que nos competem. Precisamos da Doutrina do Espiritismo, do Cristianismo Puro, a fim de controlar a energia medianímica, de maneira a mobilizá-la em favor da sublimação espiritual na fé religiosa, tanto quanto disciplinamos a eletricidade, a benefício do conforto na Civilização.
Nisso, Áulus relanceou o olhar pelos aposentos reservados mais próximos, qual se já os conhecesse, e, fixando certa porta, convidou-nos a atravessá-la.
Seguimo-lo, ombro a ombro.
Em mesa lautamente provida com fino conhaque, um rapaz, fumando com volúpia e sob o domínio de uma entidade digna de compaixão pelo aspecto repelente em que se mostrava, escrevia, escrevia, escrevia...
- Estudemos - recomendou o orientador.
O cérebro do moço embebia-se em substância escura e pastosa eu escorria das mãos do triste companheiro que o enlaçava.
A dupla em trabalho não nos registrou a presença.
- Neste instante - anunciou Áulus, atencioso -, nosso irmão desconhecido é hábil médium psicógrafo. Tem as células do pensamento integralmente controladas pelo infeliz cultivador de crueldade sob a nossa vista. Imanta-se-lhe à imaginação e lhe assimila as ideias, atendendo-lhe aos propósitos escusos, através dos princípios da indução magnética, de vez que o rapaz, desejando produzir páginas escabrosas, encontrou quem lhe fortaleça a mente e o ajude nesse mister.
Imprimindo à voz significativa expressão, ajuntou:
- Encontramos sempre o que procuramos ser.
Finda a breve pausa que nos compeliu à reflexão, Hilário recomeçou:
- Todavia, será ele um médium na acepção real do termo? Será pela ativa em agrupamento espírita comum?
- Não. Não está sob qualquer disciplina espiritualizante. É um moço de inteligência vivaz, sem maior experiência da vida, manejado por entidades perturbadoras.
Após inclinar-se alguns momentos sobre os dois, o instrutor elucidou com benevolência:
- Entre as excitações do álcool e do fumo que saboreiam juntos, pretendem provocar uma reportagem perniciosa, envolvendo uma família em duras aflições. Houve um homicídio, a cuja margem aparece a influência de certa jovem, aliada às múltiplas causas em que se formou o deplorável acontecimento. O rapaz que observamos, amigo de operoso lidador da imprensa, é de si mesmo dado à malícia e, com a antena mental ligada para os ângulos mais desagradáveis do problema, ao atender um pedido de colaboração do cronista que lhe é companheiro, encontrou, no caso de que hoje se encarrega, o concurso de ferrenho e viciado perseguidor da menina em foco, interessado em exagerar-lhe a participação na ocorrência, com o fim de martelar-lhe a mente apreensiva e arrojá-la aos abusos da mocidade...
- Mas como? - indagou Hilário, espantadiço.
- O jornalista, de pose do comentário calunioso, será o veículo de informações tendenciosas ao público. A moça ver-se-á, de um instante para outro, exposta às mais desapiedadas apreciações, e decerto se perturbará, sobremaneira, de vez que não se acumpliciou com o mal, na forma em que se lhe define a colaboração no crime. O obsessor, usando calculadamente o rapaz com quem se afina, pretende alcançar o noticiário de sensação, para deprimir a vida moral dela e, com isso, amolecer-lhe o caráter, trazendo-a, se possível, ao charco vicioso em que ele jaz.
- E conseguirá? - insistiu meu colega, assombrado.
- Quem sabe?
E, algo triste, o orientador acrescentou:
- Naturalmente a jovem teria escolhido o gênero de provações que atravessa, dispondo-se a lutar, com valor, contra as tentações.
- E se não puder combater com força precisa?
- Será mais justo dizer "se não quiser" porque a Lei não nos confia problemas de trabalho superiores à nossa capacidade de solução. Assim, pois, caso não delibere guerrear a influência destrutiva, demorar-se-á por muito tempo nas perturbações a que já se encontra ligada em princípio.
- Tudo isso por quê?
A pergunta de Hilário pairou no ar por aflitiva interrogação, todavia, Áulus asserenou-nos o ânimo, elucidando:
- Indubitavelmente, a jovem e o infeliz que a persegue estão unidos um ao outro, desde muito tempo... Terão estado juntos nas regiões inferiores da vida espiritual, antes da reencarnação com que a menina presentemente vem sendo beneficiada. Reencontrando-a na experiência física, de cujas vantagens ainda não partilha, o desventurado companheiro tenta incliná-la, de novo, à desordem emotiva, com o objetivo de explorá-la em atuação vampirizante.
Áulus fez ligeiro intervalo, sorriu melancólico e acentuou:
- Entretanto, falar nisso seria abrir as páginas comoventes de enorme romance, desviando-nos do fim que nos propomos atingir. Detenhamo-nos na mediunidade.
Buscando aliviar a atmosfera de indagações que Hilário sempre condensava em torno de si mesmo, ponderei:
- O quadro sob nossa análise induz à meditação nos fenômenos gerais de intercâmbio em que a Humanidade total se envolve sem perceber...
- Ah! Sim! - concordou o orientador - faculdades medianímicas e cooperação do mundo espiritual surgem por toda parte. Onde há correntes mentais existe associação. E toda associação é interdependência e influenciação recíproca. Daí concluímos quanto à necessidade de vida nobre, a fim de atrairmos pensamentos que nos enobreçam. Trabalho digno, bondade, compreensão fraterna, serviço aos semelhantes, respeito à Natureza e oração constituem os meios mais puros de assimilar os princípios superiores da vida, porque damos e recebemos, em espírito, no plano das ideias, segundo leis universais que não conseguiremos iludir.
Em silencioso gesto com que nos recordava o dever a cumprir, o Assistente convidou-nos à retirada.

  Livro: "Nos Domínios da Mediunidade"   Psicografia: Francisco Candido Xavier.  Pelo espírito: André Luiz.

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