Caía a noite...
Após o dia quente, a multidão
desfilava na via pública, evidentemente buscando o ar fresco.
Dirigimo-nos a outro templo
espírita, em companhia de Áulus, segundo o nosso plano de trabalho, quando
tivemos nossa atenção voltada para enorme gritaria.
Dois guardas arrastavam, de
restaurante barato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.
O mísero esperneava e
proferia palavras rudes, protestando, protestando...
- Observem o nosso infeliz
irmão! - determinou o orientador.
E porque não havia muito
tempo entre a porta ruidosa e o carro policial, pusemo-nos em observação.
Achava-se o pobre amigo
abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.
Num átino, reparamos que a
bebedeira alcançava os dois, porquanto se justapunham completamente um ao
outro, exibindo as mesmas perturbações.
Em breves instantes, o
veículo buzinou com pressa e não nos foi possível dilatar anotações.
- O quadro daria ensejo a
valiosos apontamentos...
Ante a alegação de Hilário, o
Assistente considerou que dispúnhamos de tempo bastante para a colheita de
alguns registros interessantes e convidou-nos a entrar.
A casa de pasto
regurgitava...
Muita alegria, muita gente.
Lá dentro, certo
recolheríamos material adequado a expressivas lições.
Transpusemos a entrada.
As emanações do ambiente
produziam em nós indefinível mal-estar.
Junto de fumantes e bebedores
inveterados, criaturas desencarnadas de triste feição se demoravam expectantes.
Algumas sorviam as baforadas
de fumo arremessadas ao ar, ainda aquecidas pelo calor dos pulmões que as
expulsavam, nisso encontrando alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de
alcoólatras impenitentes.
Indicando-nos, informou o
orientador:
- Muitos de nossos irmãos,
que já se desvencilharam do vaso carnal, se apegam com tamanho desvario às
sensações da experiência física, que se cosem àqueles nossos amigos terrestres
temporariamente desequilibrados nos desagradáveis costumes por que se deixam
influenciar.
- Mas por que mergulhar,
dessa forma, em prazeres dessa espécie?
- Hilário - disse o
Assistente, bondoso -, o que a vida começou, a morte continua... Esses nossos
companheiros situaram a mente nos apetites mais baixos do mundo, alimentando-se
com um tipo de emoções que os localiza na vizinhança da animalidade. Não
obstante haverem frequentado santuários religiosos, não se preocuparam em
atender aos princípios da fé que abraçaram, acreditando que a existência devia
ser para eles o culto de satisfações menos dignas, com a exaltação dos mais
astuciosos e dos mais fortes. O chamamento da morte encontrou-os na esfera de
impressões delituosas e escuras e, como é da Lei que cada alma receba da vida
de conformidade com aquilo que dá, não encontram interesse se não nos lugares
onde podem nutrir as ilusões que lhes são peculiares, porquanto, na posição em
que se veem, temem a verdade e abominam-na, procedendo como a coruja que foge à
luz.
Meu colega fez um gesto de
piedade e indagou:
-
Entretanto, como se transformarão?
-
Chegará o dia em que a própria Natureza lhes esvaziará o cálice - respondeu
Áulus, convicto. - Há mil processos de reajuste, no Universo Infinito em que se
cumprem os Desígnios do Senhor, chamam-se eles aflição, desencanto, cansaço,
tédio, sofrimento, cárcere...
-Contudo - ponderei -, tudo
indica que esses Espíritos infortunados não se enfastiarão tão cedo da loucura
em que se comprazem...
- Concordo plenamente -
redarguiu o instrutor -, todavia, quando não se fatiguem, a Lei poderá
conduzi-los a prisão regeneradora.
- Como?
A pergunta de Hilário ecoou,
cristalina, e o Assistente deu-se pressa em explicar:
- Há dolorosas reencarnações
que significam tremenda luta expiatória para as almas necrosadas no vício.
Temos, por exemplo, o mongolismo, a hidrocefalia, a paralisia, a cegueira, a
epilepsia secundária, o idiotismo, o aleijão de nascença e muitos outros
recursos, angustiosos embora, mas necessários, e que podem funcionar, em
benefício da mente desequilibrada, desde o berço, em plena fase infantil. Na
maioria das vezes, semelhantes processos de cura prodigalizam bons resultados
pelas provações obrigatórias que oferecem...
- No entanto - comentei -, e
se os nossos irmãos encarnados, visivelmente confiados à devassidão,
resolvessem reconsiderar o próprio caminho?!... se voltassem à regularidade,
através da renovação mental com alicerces no bem?!...
- Ah! Isso seria ganhar
tempo, recuperando a si mesmos e amparando com segurança os amigos
desencarnados... Usando a alavanca da vontade, atingimos a realização de
verdadeiros milagres... Entretanto, para isso, precisariam despender esforço
heróico.
Observando os beberrões,
cujas taças eram partilhadas pelos sócios que lhes eram invisíveis, Hilário
recordou:
- Ontem, visitamos um templo,
em que desencarnados sofredores se exprimiam por intermédio de criaturas
necessitadas de auxílio, e ali estudamos algo sobre mediunidade... Aqui, vemos
entidades viciosas valendo-se de pessoas que com elas se afinam numa perfeita
comunhão de forças inferiores... Aqui, tanto quanto lá, seria lícito ver a mediunidade
em ação?
- Sem qualquer dúvida -
confirmou o orientador -; recursos psíquicos, nesse ou naquele grau de
desenvolvimento, são peculiares a todos, tanto quanto o poder de locomoção ou a
faculdade de respirar, constituindo forças que o Espírito encarnado ou desencarnado
pode empregar no bem ou no mal de si mesmo. Ser médium não quer dizer que a
alma esteja agraciada por privilégios ou conquistas feitas. Muitas vezes, é
possível encontrar pessoas altamente favorecidas com o dom da mediunidade, mas
dominadas, subjugadas por entidades sombrias ou delinquentes, com a s quais se
afinam de modo perfeito, servindo ao escândalo e à perturbação, em vez de
cooperarem na extensão do bem. Por isso é que não basta a mediunidade para a
concretização dos serviços que nos competem. Precisamos da Doutrina do
Espiritismo, do Cristianismo Puro, a fim de controlar a energia medianímica, de
maneira a mobilizá-la em favor da sublimação espiritual na fé religiosa, tanto
quanto disciplinamos a eletricidade, a benefício do conforto na Civilização.
Nisso, Áulus relanceou o
olhar pelos aposentos reservados mais próximos, qual se já os conhecesse, e,
fixando certa porta, convidou-nos a atravessá-la.
Seguimo-lo, ombro a ombro.
Em mesa lautamente provida
com fino conhaque, um rapaz, fumando com volúpia e sob o domínio de uma
entidade digna de compaixão pelo aspecto repelente em que se mostrava,
escrevia, escrevia, escrevia...
- Estudemos - recomendou o
orientador.
O cérebro do moço embebia-se
em substância escura e pastosa eu escorria das mãos do triste companheiro que o
enlaçava.
A dupla em trabalho não nos
registrou a presença.
- Neste instante - anunciou
Áulus, atencioso -, nosso irmão desconhecido é hábil médium psicógrafo. Tem as
células do pensamento integralmente controladas pelo infeliz cultivador de
crueldade sob a nossa vista. Imanta-se-lhe à imaginação e lhe assimila as
ideias, atendendo-lhe aos propósitos escusos, através dos princípios da indução
magnética, de vez que o rapaz, desejando produzir páginas escabrosas, encontrou
quem lhe fortaleça a mente e o ajude nesse mister.
Imprimindo à voz
significativa expressão, ajuntou:
- Encontramos sempre o que
procuramos ser.
Finda a breve pausa que nos
compeliu à reflexão, Hilário recomeçou:
- Todavia, será ele um médium
na acepção real do termo? Será pela ativa em agrupamento espírita comum?
- Não. Não está sob qualquer
disciplina espiritualizante. É um moço de inteligência vivaz, sem maior
experiência da vida, manejado por entidades perturbadoras.
Após inclinar-se alguns
momentos sobre os dois, o instrutor elucidou com benevolência:
- Entre as excitações do
álcool e do fumo que saboreiam juntos, pretendem provocar uma reportagem
perniciosa, envolvendo uma família em duras aflições. Houve um homicídio, a
cuja margem aparece a influência de certa jovem, aliada às múltiplas causas em
que se formou o deplorável acontecimento. O rapaz que observamos, amigo de
operoso lidador da imprensa, é de si mesmo dado à malícia e, com a antena
mental ligada para os ângulos mais desagradáveis do problema, ao atender um
pedido de colaboração do cronista que lhe é companheiro, encontrou, no caso de
que hoje se encarrega, o concurso de ferrenho e viciado perseguidor da menina
em foco, interessado em exagerar-lhe a participação na ocorrência, com o fim de
martelar-lhe a mente apreensiva e arrojá-la aos abusos da mocidade...
- Mas como? - indagou
Hilário, espantadiço.
- O jornalista, de pose do
comentário calunioso, será o veículo de informações tendenciosas ao público. A
moça ver-se-á, de um instante para outro, exposta às mais desapiedadas
apreciações, e decerto se perturbará, sobremaneira, de vez que não se
acumpliciou com o mal, na forma em que se lhe define a colaboração no crime. O
obsessor, usando calculadamente o rapaz com quem se afina, pretende alcançar o
noticiário de sensação, para deprimir a vida moral dela e, com isso,
amolecer-lhe o caráter, trazendo-a, se possível, ao charco vicioso em que ele
jaz.
- E conseguirá? - insistiu
meu colega, assombrado.
- Quem sabe?
E, algo triste, o orientador
acrescentou:
- Naturalmente a jovem teria
escolhido o gênero de provações que atravessa, dispondo-se a lutar, com valor,
contra as tentações.
- E se não puder combater com
força precisa?
- Será mais justo dizer
"se não quiser" porque a Lei não nos confia problemas de trabalho superiores
à nossa capacidade de solução. Assim, pois, caso não delibere guerrear a
influência destrutiva, demorar-se-á por muito tempo nas perturbações a que já
se encontra ligada em princípio.
- Tudo isso por quê?
A pergunta de Hilário pairou
no ar por aflitiva interrogação, todavia, Áulus asserenou-nos o ânimo,
elucidando:
- Indubitavelmente, a jovem e
o infeliz que a persegue estão unidos um ao outro, desde muito tempo... Terão
estado juntos nas regiões inferiores da vida espiritual, antes da reencarnação
com que a menina presentemente vem sendo beneficiada. Reencontrando-a na
experiência física, de cujas vantagens ainda não partilha, o desventurado
companheiro tenta incliná-la, de novo, à desordem emotiva, com o objetivo de
explorá-la em atuação vampirizante.
Áulus fez ligeiro intervalo,
sorriu melancólico e acentuou:
- Entretanto, falar nisso
seria abrir as páginas comoventes de enorme romance, desviando-nos do fim que
nos propomos atingir. Detenhamo-nos na mediunidade.
Buscando aliviar a atmosfera
de indagações que Hilário sempre condensava em torno de si mesmo, ponderei:
- O quadro sob nossa análise
induz à meditação nos fenômenos gerais de intercâmbio em que a Humanidade total
se envolve sem perceber...
- Ah! Sim! - concordou o
orientador - faculdades medianímicas e cooperação do mundo espiritual surgem
por toda parte. Onde há correntes mentais existe associação. E toda associação
é interdependência e influenciação recíproca. Daí concluímos quanto à necessidade
de vida nobre, a fim de atrairmos pensamentos que nos enobreçam. Trabalho
digno, bondade, compreensão fraterna, serviço aos semelhantes, respeito à
Natureza e oração constituem os meios mais puros de assimilar os princípios
superiores da vida, porque damos e recebemos, em espírito, no plano das ideias,
segundo leis universais que não conseguiremos iludir.
Em silencioso gesto com que
nos recordava o dever a cumprir, o Assistente convidou-nos à retirada.
Livro: "Nos Domínios da Mediunidade" Psicografia:
Francisco Candido Xavier. Pelo espírito: André Luiz.