Sob a influência de
Clementino, que o envolvia inteiramente, Silva levantara-se e dirigia-se ao
comunicante com bondade:
- Meu amigo, tenhamos calma e
roguemos a amparo divino!
- Estou doente,
desesperado...
- Sim, todos somos enfermos,
mas não nos cabe perder a confiança. Somos filhos de Nosso Pai Celestial que é
sempre pródigo de amor.
- É padre?
- Não. Sou seu irmão.
- Mentira. Nem o conheço...
- Somos uma só família, à
frente de Deus.
O interlocutor conturbado
riu-se irônico e acentuou:
- Deve ser algum sacerdote
fanatizado para conversar nestes termos!...
A paciência do doutrinador
sensibilizava-nos.
Não recebia Libório, qual se
fora defrontado por um habitante das sombras, suscetível de acordar-lhe
qualquer impulso de curiosidade menos digna.
Ainda mesmo descontando o
valioso concurso do mentor que o acompanhava, Raul emitia de si mesmo sincera
compaixão de mistura com equívoco interesse paternal. Acolhia o hóspede sem
estranheza ou irritação, como se o fizesse a um familiar que regressasse
demente ao santuário doméstico.
Talvez por essa razão o
obsessor a seu turno se revelava menos agastadiço. Tão logo passou a entender-se,
de algum modo, com o dirigente da casa, observamos que Eugênia se revigorava no
esforço assistencial que lhe competia.
-Não sou um ministro
religioso - continuava Raul, imperturbável -, mas desejo me aceite como seu
amigo.
- Que irrisão! Não existem amigos
quando a miséria está conosco ... Dos companheiros que conheci, todos me
abandonaram. Resta-me apenas Sara! Sara, que não deixarei...
Fixou a expressão de quem se
detinha na lembrança da pessoa a quem se referira e acrescentou com recalcada
indignação:
- Ignoro por que me entravam
agora os passos. É inútil. Aliás, não sei a razão pela qual me contenho. Um
homem provocado, qual me vejo, decerto deveria esbofeteá-los a todos... Afinal,
que fazem aqui estes cavalheiros silenciosos e estas mulheres mudas? Que
pretendem de mim?
- Estamos em prece por sua
paz - falou Silva, com inflexão de bondade e carinho.
- Grande novidade! Que há de
comum entre nós? Devo-lhes algo?
- Pelo contrário - exclamou o
interlocutor, convicto -, nós somos quem lhe deve atenção e assistência.
Estamos numa instituição de serviço fraterno e é fora de dúvida que, num
hospital, a ninguém será lícito inquirir da luta particular daqueles que lhe
batem à porta, porque, antes de tudo, é dever da medicina e da enfermagem a
prestação de socorro às feridas que sangram.
Ante o argumento enunciado
com sinceridade e simpleza, o renitente sofredor pareceu apaziguar-se ainda
mais. Jactos de energia mental, partidos de Silva, alcançavam-no agora em
cheio, no tórax, como a lhe buscarem o coração.
Libório tentou falar,
contudo, à maneira de um viajante que já não pode resistir à aridez do deserto,
comoveu-se diante da ternura daquele inesperado acolhimento, a surgir-lhe por
abençoada fonte de água fresca. Surpreendido, notou que a palavra lhe falecia embargada
na garganta.
Sob o sábio comando de
Clementino, falou o doutrinador com afetividade ardente:
- Libório, meu irmão!
Essas três palavras foram
pronunciadas com tamanha inflexão de generosidade fraternal que o hóspede não
pôde sopitar o pranto que lhe subia do âmago.
Raul avançou para ele,
impondo-lhe as mãos, das quais jorrava luminoso fluxo magnético, e convidou:
- Vamos orar!
Findo um minuto de silêncio,
a voz do diretor da casa, sob a inspiração de Clementino, suplicou
enternecidamente:
- Divino Mestre, lança
compassivo olhar sobre a nossa família aqui reunida...
Viajores de muitas romagens,
repousamos neste instante sob a árvore bendita da prece e te imploramos amparo!
Todos somos endividados para
contigo, todos nos achamos empenhados à tua bondade infinita, à maneira de
servos insolventes para com o senhor.
Mas, rogando-te por nós
todos, pedimos particularmente agora pelo companheiro que, decerto, encaminhas
ao nosso coração, qual se fora uma ovelha que torna ao aprisco ou um irmão
consanguíneo que volta ao lar...
Mestre, dá-nos a alegria de
recebê-lo de braços abertos.
Sela-nos os lábios para que
lhe não perguntemos de onde vem e descerra-nos a alma para a ventura de tê-lo
conosco em paz.
Inspira-nos a palavra a fim
de que a imprudência não se imiscua em nossa língua, aprofundando as chagas
interiores do irmão, e ajuda-nos a sustentar o respeito que lhe devemos...
Senhor, estamos certos de que
o acaso não te preside às determinações!
Teu amor, que nos reserva
invariavelmente o melhor, cada dia, aproxima-nos uns dos outros para o trabalho
justo.
Nossas almas são fios da vida
em tuas mãos!
Ajusta-os para que obtenhamos
do Alto o favor de servir contigo!
Nosso Libório é mais um irmão
que chega de longe, de recuados horizontes do passado...
Ó senhor, auxilia-nos para
que ele não nos encontre proferindo o teu nome em vão!...
O visitante chorava.
Via-se, porém, com clareza, que
não eram as palavras a força que o convencia, mas sim o sentimento irradiante
com que eram estruturadas.
Raul Silva, sob a destra
radiosa de Clementino, afigurava-se-nos aureolado de intensa luz.
- Ó Deus, que se passa
comigo?!... - conseguiu gritar Libório em lágrimas.
O irmão Clementino fez breve
sinal a um dos assessores de nosso plano, que apressadamente acorreu, trazendo
interessante peça que me pareceu uma tela de gaze tenuíssima, com dispositivos
especiais, medindo por inteiro um metro quadrado, aproximadamente.
O mentor espiritual da
reunião manobrou pequena chave num dos ângulos do aparelho e o tecido suave se
cobriu de leve massa fluídica, branquicenta e vibrátil.
Em seguida postou-se
novamente ao pé de Silva, que, controlado por ele, disse ao comunicante:
- Lembre-se, meu amigo,
lembre-se! Faça um apelo à memória! Veja à frente os quadros que se
desenrolarão aos nossos olhos!...
De imediato, como se tivesse
a atenção compulsoriamente atraída para a tela, o visitante fixou-a e, desde
esse momento, vimos com assombro que o retângulo sensibilizado exibia variadas
cenas de que o próprio Libório era o principal protagonista. Recebendo-as
mentalmente, Raul Silva passou a descrevê-las:
- Observe, meu amigo! É
noite. Ouve-se um burburinho de algazarra a distância... Sua mãe velhinha
chama-o à cabeceira e pede-lhe assistência... Está exausta... Você é o filho
que lhe resta... Derradeira esperança de flagelada vida. Único arrimo... A
pobre sente-se morrer. A dispnéia martiriza-a... É o distúrbio cardíaco
pressagiando o fim do corpo... Tem medo. Declara-se receosa da solidão, de vez
que é sábado carnavalesco e os vizinhos se ausentaram na direção dos centros
festivos. Parece uma criança atemorizada... Contempla-o, ansiosa, e roga-lhe
que fique... Você responde que sairá tão-somente por alguns minutos... o
bastante para trazer-lhe a medicação necessária... Em seguida, avança, rápido,
para uma gaveta situada em aposento próximo e apropria-se do único dinheiro de
que a enferma dispõe, algumas centenas de cruzeiros, com que você se julga
habilitado a desfrutar as falsas alegrias do seu clube... Amigos espirituais de
seu lar abeiram-se de você, implorando socorro em favor da doente, quase
moribunda, mas você se mostra impermeável a qualquer pensamento de compaixão...
Dirige algumas palavras apressadas à enferma e sai para a rua. Em plena via
pública, imanta-se aos indesejáveis companheiros desencarnados com os quais se
afina... entidades turbulentas, hipnotizadas pelo vício, com as quais você se
arrasta ao prazer... Por três e quatro noites consecutivos, entrega-se à
loucura, com esquecimento de todas as obrigações... Somente na madrugada de
quarta-feira você volta estafado e semi-inconsciente... A velhinha, socorrida
por braços anônimos, não o reconhece mais... Aguarda, resignadamente, a morte,
enquanto você se encaminha para um quarto dos fundos, na expectativa de
conseguir um banho que o auxilie a refazer-se... Abre o gás e senta-se por
alguns minutos, experimentando a cabeça entontecida... O corpo exige descanso,
depois da louca folia... A fadiga surge, insopitável... Desapercebe-se de si
mesmo e dorme semi-embriagado, perdendo a existência, porque as emanações
tóxicas lhe cadaverizam o corpo... Na manhã clara de sol, um rabecão leva-o ao
necrotério como simples suicida...
Nessa altura, o interlocutor,
como se voltasse de um pesadelo, bradou desesperado:
- Oh! Esta é a verdade! A
verdade!... onde está minha casa? Sara, Sara, quero minha mãe, minha mãe!...
- Acalme-se! - recomendou
Raul, compadecido - nunca nos faltará o socorro divino! Seu lar, meu amigo,
cerrou-se com os seus olhos de carne e sua genitora, de outras esfera, lhe
estende os braços amorosos e santificantes...
O comunicante, vencido, caiu
em lágrimas.
Tão grande lhe surgiu a crise
emotiva que o mentor espiritual do grupo se apressou a desligá-lo do
equipamento mediúnico, entregando-o aos vigilantes para que fosse
convenientemente abrigado em organização próxima.
Libório, em fundo processo de
transformação, afastou-se, tornando Eugênia à posição normal.
E porque a tela regressasse à
transparência do início, desfechei sobre o nosso orientador algumas indagações
improvisadas.
Que função desempenhava
aquele retângulo que eu ainda não conhecia? Que cenas eram aquelas que se
haviam desdobrado céleres sob a nossa admiração?
- Aquele aparelho - informou
Áulus, gentil - é um "condensador". Tem a propriedade de concentrar
em si os raios de força projetados pelos componentes da reunião, reproduzindo
as imagens que fluem do pensamento da entidade comunicante, não só para a nossa
observação, mas também para a análise do doutrinador, que as recebe em seu
campo intuitivo, agora auxiliado pelas energias magnéticas do nosso plano.
- Evidentemente, a engrenagem
de semelhante mecanismo deve ser maravilhosa! - exclamou Hilário, sob forte
impressão.
- Nada de espanto - alegou o
orientador -; o hóspede espiritual apenas contempla os reflexos da mente de si
mesmo, à maneira de pessoa que se examina, através de um espelho.
- Mas, se estamos à frente de
um condensador de forças - considerei -, precisamos concluir que o êxito do
trabalho depende da colaboração de todos os componentes do grupo...
- Exato - confirmou o
Assistente -, as energias ectoplásmicas são fornecidas pelo conjunto dos
companheiros encarnados, em favor de irmãos que ainda se encontram
semimaterializados nas faixas vibratórias da experiência física. Por isso
mesmo, Silva e Clementino necessitam do concurso geral para que a máquina do
serviço funcione tão harmoniosamente quanto seja possível. Pessoas que
exteriorizam sentimentos menos dignos, equivalentes a princípios envenenados
nascidos das viciações de variada espécie, perturbam enormemente as atividades
dessa natureza, porquanto arrojam no condensador as sombras de que se fazem
veículo, prejudicando a eficiência da assembléia e impedindo a visão perfeita
da tela por parte da entidade necessitada de compreensão e de luz.
Levava-nos o assunto a
diferentes inquirições, mas o nosso orientador lançou-nos um olhar discreto,
como a pedir-nos silêncio e atenção.
Livro: "Nos Domínios da
Mediunidade" Psicografia:
Francisco C. Xavier. Pelo espírito:
André Luiz.