CARTA À MÃE CATÓLICA
Querida mamãe: Esta
carta contém uma terrível confissão: tornei-me espírita. Chamo-lhe confissão
porque expressa minha convicção mais íntima, profunda, meditada e sofrida;
chamo-lhe terrível porque sei quanto vai feri-Ia também, íntima e profundamente.
Conhecendo, como conheço, sua inabalável fé católica, sei que, para a
senhora, é como se perdesse o filho amado, que se precipitou
irremediavelmente nas chamas do inferno.
Sei que sua religião - que foi
também minha, desde o berço até bem adiante na vida - condena, sem remissão,
aquele que lhe volta as costas. Mas sei também que a senhora é honesta e
convencidamente católica e concordará comigo em que caberá a Deus julgar e não
às organizações religiosas do nosso mundo imperfeito.
A senhora tem uma
bela religião, inspirada que foi na fonte comum do Cristianismo. Outras
religiões também foram ao Cristo para beber inspiração e traçar novos roteiros
aos homens, mostrando-lhes os caminhos de Deus.
Sua religião é bela pelo
seu conteúdo moral e espiritual, pela importância de sua contribuição à
civilização, pelos grandes espíritos que povoam sua galeria, desde os vultos que
se tornaram universais até o pároco anônimo, mas profundamente humano, que
orienta meia dúzia de almas no seu modesto rebanho.
Respeito todas as suas
crenças; no entanto sua religião, como todas as demais, tem um conteúdo
espiritual de origem divina e um continente de tosca fatura humana. Se a
examinarmos de perto, veremos que o conteúdo continua puro e luminoso, pois
eterna é a sua substância, e sua concepção independeu da vontade do homem; mas
veremos, também, que o vaso que o contém é defeituoso e imperfeito como toda
obra humana.
Por melhores que fossem as intenções da sua religião - e
muitas, infelizmente, não o foram - muitos dos espíritos incumbidos de ajudar a
fazer o vaso não viram bem claro os planos do Senhor e cometeram falhas, na
ilusória esperança de que estavam criando medida de autodefesa contra futuros
inimigos da nova fé. E, assim, tudo se petrificou na imobilidade assustadora dos
dogmas. Mais ainda: a precaução foi inútil, porque Deus, na sua sabedoria
infinita, não quer deixar que as coisas permaneçam estáticas. Toda a Natureza
vibra, se move, evolui, nasce, morre, emigra e renasce. Por "que haveria Deus de
permitir que no meio de tanto movimento só um corpo doutrinário permanecesse
inerte, estacionário, contraditando suas próprias leis?
Se o próprio
Cristo aqui veio para modificar ampliar e dar nova vida a um corpo doutrinário
anterior ... E note bem: Ele não veio destruir, Ele veio executar um dos cânones
da Lei Divina, que é a evolução. Retomou a doutrina morta no ponto em que estava
e soprou-lhe novamente a vida.
Para isso foi preciso pregar, curar, dar
exemplos, sofrer e morrer. Ainda assim, até hoje o negam, o espezinham e o
desprezam, até mesmo em nome dos princípios morais e filosóficos que Ele pregou.
De modo que respeito sua fé. O Catolicismo tem prestado grandes serviços e
continuará certamente a prestá-Ias, todas as vezes em que prevalecer em suas
obras a substância divina que nele se contém, todas as vezes em que subir às
culminâncias de Francisco de Assis, por exemplo. Outros grupos religiosos
prestam, igualmente, grandes serviços de natureza espiritual, pois o que
importa, substancialmente, não é o rótulo da nossa crença religiosa, é a própria
crença e o grau de caridade que ela é capaz de instilar em nossos corações.
Desde que seja pura e honesta, sincera e humilde, Deus certamente nos receberá
em seus braços um dia, porque seu maior Emissário nos garantiu que nenhuma de
suas ovelhas se perderia.
Por tudo isso respeito sua fé e rogo a Deus que
a ajude a compreender, no devido tempo, o passo que ora dou.
Sei que a senhora pensará neste momento, a ler
confusa e desgostosa estas linhas: "Coitado, o demônio o arrastou para as hostes
do mal."
Ensinaram à senhora que o Espiritismo é obra do demônio, que
comanda, poderoso e invencível, todos os fenômenos espíritas.
Digo-lhe eu agora, com a maior pureza na minha
intenção: o demônio fez no meu caso (e em inúmeros outros) obra magnífica. Por
quê? Porque retirou das trevas impenetráveis da descrença e me arrastou para a
luz da fé. Digo arrastou e digo bem, porque
reagi e resisti enquanto me foi possível. Educado como fui - a senhora o sabe -,
no mais profundo horror à luminosa Doutrina dos Espíritos,li os primeiros livros
tomado de sobressaltos e temores.
Mas, se não me restava nada da antiga
fé, pensava eu, que mal poderia haver em que eu continuasse a procurar, alhures,
lenitivo para as minhas dúvidas? Sim, porque eu duvidava; mais que isso: eu
descria.
Verificara, na idade ingrata do raciocínio, que não "poderia
salvar minha crença da meninice, "pois seus destroços nadavam esparsos pelo mar
do desencanto. No princípio, sentira um alívio tolo, como que desobrigado de
compromissos éticos e religiosos. Era livre, era superior a toda aquela massa
ignara que cria. Mas os anos foram volvendo e comecei a duvidar também da minha
descrença.
A senhora sabe que o homem é essencialmente espírito e de lá,
de onde vem, ele traz a intuição de Deus. Trazendo no fundo do ser uma fagulha
emanada de seu Criador, como pode ele subsistir sem Deus e passar pela vida
indiferente, sem a crença naquele que o criou e o conduz? Poderá teimar
ingenuamente, como uma criança perdida, e nem por isso Deus o abandonará.
Deixe-me contar-lhe uma parábola.
Disse uma criança a seu pai: "Pai, você
não existe." Respondeu-lhe o pai, condescendente: "Não? Por que você acha que eu
não existo?" - "Porque você é absurdo. Porque não posso compreendê-lo. Como é
possível você ter existido antes de mim? Como é possível você saber, por
exemplo, que aquela floresta escura me reserva perigos e sofrimentos? Quem lhe
ensinou as coisas que você sabe? Quem o fez? Não. Você não existe."
E,
para prová-lo, quis atravessar a floresta na escuridão da noite. Iria sozinho,
que nada o assustava. E foi. Mas o pai, que o amava, foi à sua frente; colocou
sinais pelo caminho; abriu-lhe até algumas picadas e poliu a face da lua para
que ela iluminasse um pouco as veredas.
Lá se foi a criança. No
princípio estava alegre, sentia-se forte e independente. Era dona de sua
vontade, não teria que prestar contas a ninguém do que fizesse. Esqueceu-se até
do pai. Depois começou a sentir-se muito só, a caminhar solitária pelas veredas.
E, absurdamente, começou a ter saudade do pai e começou a notar que sua mão
bondosa andara por ali a espalhar sinais de sua presença. Removera uns espinhos
daqui; tirara uma pedra dali; deixara um pouco d'água fresca acolá. E como é que
a lua, perdida nas nuvens, brilhava agora tão intensamente no céu? Teria sido o
pai que lhe aumentara o brilho? Era sim, desconfiava ela. Sentia isso agora,
perfeitamente, com nitidez. Então, o pai existia, era bom e o amava. Foi só o
tempo de pensar assim e sair do outro lado da mata. Lá estava o pai, à sua
espera, com o amor sublimado de sempre. A criança caiu a seus pés, beijando-lhe
as
mãos, lamentando o tempo que perdera na mata escura, extraviada, sofrendo
inutilmente para provar a si mesma que seu pai não existira. Esquecia-se a
coitada de que, se conseguisse prová-lo, teria provado que ela também não
existia. Que faria então?
Aí está a história. Aqui estou eu, humildemente,
aos pés do Pai, sempre que posso, em cada momento da minha vida, para
agradecer-lhe as bênçãos incontáveis que sobre mim tem derramado generosamente.
Aqui estou, dentro de minhas limitadas forças, lutando como posso contra minhas
imperfeições que são muitas e meus erros que são inumeráveis. Aqui estou a seus
pés a implorar-lhe que me ajude, iluminando cada vez mais meu entendimento e
meus caminhos, inspirando-me pensamentos e atos nobres, fortalecendo-me na
prática da caridade. Aqui estou a lhe pedir coragem e inspiração para que, por
minha vez, possa ajudar os filhos que Ele me confiou, orientando-os na senda do
bem. Aqui estou para agradecer acima de tudo o ter Ele permitido que voltasse ao
mundo por intermédio da senhora, que, colaborando na sua obra, ajudou a formar
meu corpo físico e tanto contribuiu, com a nobreza de seu caráter, para reformar
meu espírito nesta peregrinação. E me sinto tranquilo e feliz tanto quanto pode
sê-lo a criatura imperfeita que ainda somos, porque creio, porque sofro e luto e
aprendi a orar. Estou feliz porque a minha fé renasceu fortalecida, imune aos
embates da razão, porque a própria razão a ilumina.
Quero, pois, pedir à
senhora que não se preocupe comigo. Algum dia, com a graça de Deus, nos
encontraremos em outras condições, desembaraçados deste tosco invólucro material
e conversaremos sobre estes e outros problemas. Estou certo de que lá
encontraremos também muitos e muitos amigos que, levados por injunções várias,
foram espíritas, protestantes, judeus, católicos ou budistas. E a senhora não
mais se admirará, porque saberá então que a Deus não importa de onde vem a prece
que sobe até seus pés: o que lhe importa é a fé que a sustenta, o que lhe
importa são as obras que o iluminam. Mesmo porque, sem as asas poderosas da fé,
a prece não chegaria sequer a esvoaçar naquelas alturas inconcebíveis ao
espírito humano. Levada pela fé, no entanto, lá chegam nossos agradecimentos e
nossos pedidos, seja qual for a igreja de onde oramos, porque, ao criar seus
filhos, Ele não os separou irremediavelmente em seitas, raças, nações e castas:
Ele apenas os criou simples e perfectíveis, como ensina a boa doutrina. E lhes
deixou abertos os caminhos, para que cada qual tivesse o mérito de suas
descobertas, de suas vitórias e de sua paz espiritual.
Deus guarde,
ilumine e assista sempre seu bondoso espírito, que pesada tem sido sua cota de
sofrimentos e angústias.
Abençoe, em nome do Senhor, seu filho na carne e
irmão em espírito.
João Marcus (pseudônimo de Hermínio
C. Miranda)
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