24.10.21

Luz nas Trevas do Fanatismo

A minissérie MISSA DA MEIA-NOITE (2021), exibida pela Netflix, desenvolve uma trama centrada na figura do padre Paul (Hamish Linklater). Recém-chegado a uma minúscula ilha para substituir o veterano sacerdote da comunidade de pouco mais de 120 habitantes, ele surpreende a todos com um milagre: uma adolescente presa a uma cadeira de rodas se levanta e anda em plena missa. 
Além disso, misteriosamente, as pessoas no povoado começam a rejuvenescer e curar-se das suas mazelas físicas. Carismático, o padre Paul conquista boa parte da ilhota e nas suas homilias anuncia presságios que impactarão fortemente a vida de todos. Daí por diante não vale a pena contar a estória porque se constituiria em spoiler. 
O que é mais importante na minissérie não é a aparente situação de terror que se repete em várias cenas e no enredo, o que mais se destaca é até onde pode ir o fanatismo, a obediência cega a um líder, utilizando aqui a referência religiosa, mas que se expande para a política, a empresa, a família etc. 
Em MISSA DA MEIA-NOITE, pouco a pouco vão se constituindo dois grupos. O maior, dos seguidores fiéis do padre, e outro menor, aqueles que enxergam com um pé atrás aquela revolução de acontecimentos que tremeu os alicerces da pacata Crocket. O grupo dos dogmáticos balança a cabeça para as mais absurdas justificativas de raciocínios e atos do clérigo. O grupo dos céticos questiona as enormes contradições dos fatos e argumentos, sendo rechaçados pela maioria fanatizada. 
Um fato interessante na estória é que as falsas narrativas são fundamentadas na Bíblia. O argumento utilizado é a descrição e interpretação literal das falas e versículos evangélicos. A fiel escudeira do padre Paul, Bev Keane (Samantha Sloyan), é exímia em arrumar pretexto para os desatinos e crueldades para tudo que ocorre, ancorada nas letras do Velho e Novo Testamento. 
Em COMO CURAR UM FANÁTICO (2004), o escritor israelense Amós Oz, depois de arrolar sobre algumas características dos fanáticos, sugere o desenvolvimento de três competências para se livrar da arrogável doença da rigidez extrema: 
Competência de rir de si mesmo. Desenvolver a capacidade de permitir-se de rir de seus erros e ignorância. Ser flexível e aceitar com certa leveza a sua falibilidade. Um fanático não possui senso de humor.
Competência de se ver como os outros nos veem. Desenvolver a capacidade de se colocar no lugar do outro e imaginar como ele nos vê e interpreta nossa forma de pensar e agir. Permitir-se receber feedback e descobrir valores, lógica de raciocínio, tendência herdada etc. que não consegue identificar em si. Um fanático não exercita o autoconhecimento.
Competência de existir em situações em aberto. Desenvolver a capacidade de se permitir ver outras opções de leitura da realidade além da própria percepção ou ao menos tentar minimamente entender as concepções do outro sem que isto seja aderência a elas. O fanático não consegue ser alteritário. 
Na minissérie, o diretor e roteirista Mike Flanagan deseja refletir sobre o poder da fé nas pessoas e os perigos do fanatismo, sobretudo quando se transformam em violência. 
O fanático que agride aquele que questiona a sua fé cega. 
O fanático que cancela de seu convívio aquele que apresenta as contradições da liderança carismática que segue – a quem ele o transforma numa espécie de semideus, pois jamais erra. 
O fanático que abomina as narrativas contrárias às suas, impondo-se um auto index prohibitorum de tudo que se anteponha aos seus princípios. 
O fanático que demoniza os que possam causar perigo a causa que defende. 
O fanático que literalmente deseja eliminar o seu oponente de opinião. 
Cada episódio de MISSA DA MEIA-NOITE é baseado em livros da Bíblia, começando por Gênesis e terminando pelo Apocalipse. Uma inteligente alusão ao conteúdo trabalhado no episódio sempre cheio de simbolismos e metáforas. 
É provável que a minissérie não agrade a muitos, principalmente aos que se apegarem à superfície da estória e não ao seu subterrâneo temático, e também porque ela demora um pouco a engrenar, à medida que utiliza a estratégia de construção gradual dos personagens e das situações. 
É óbvio, no entanto, que ela possui total aderência ao contexto social e político que vivemos atualmente no Brasil e no mundo, e isto possa vir a incomodar uns ou agradar a outros. 
Como necessitamos urgentemente do surgimento de um novo iluminismo diante do obscurantismo reinante nestes tempos de excessos ideológicos e rompantes de intolerância, MISSA DA MEIA-NOITE é uma estimulante reflexão às almas vívidas de um renascimento intelectual, onde tenha lugar a alteridade na maneira de pensar e comportar-se no convívio social para o bem-estar de todos, haja vista que fanatismo é sinal de desequilíbrio mental e desarmonia dos sentimentos. 
A propósito, Voltaire em TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA (1763), onde disserta mais sobre a intolerância na história, nos povos e nas religiões, lembra-nos lucidamente “que todos os homens possam recordar que são irmãos, que encarem com horror toda tirania exercida sobre as almas.” 
Fiat Lux!
Carlos Pereira - Blog de Carlos Pereira

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