Sob a guarda de venerando
amigo, que mais se nos afigurava um nume apostolar, pobre Espírito dementado
varou o recinto.
Lembrava um fidalgo antigo,
repentinamente arrancado ao subsolo, porque os fluidos que o revestiam era
verdadeira massa escura e viscosa, cobrindo-lhe a roupagem e despedindo
nauseabundas emanações.
Nenhuma das entidades
sofredoras que se acotovelavam à frente exibia tão horrenda fácies.
Aqui e ali, nos variados
semblantes a se comprimirem no lugar reservado a irmãos felizes, as máscaras de
sofrimento eram suavizadas por sinais inequívocos de arrependimento, fé,
humildade, esperança...
Mas naquele rosto patibular,
parecendo emergir de um lençol de lama, aliavam-se a frieza e a malignidade, a
astúcia e o endurecimento.
Ante a expressão com que
surgia de inopino, os próprios Espíritos perturbados recuaram receosos.
Na destra, o estranho recém-chegado
trazia um azorrangue que tentava estalar, ao mesmo tempo que proferia
estrepitosas exclamações.
-Quem me fez chegar até aqui,
contra a minha vontade? - bramia, semi-afônico. - Covardes! Por que me
segregaram assim? Onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Infames!
Pagar-me-ão caro os ultrajes sofridos!...
E evidenciando o extremo
desequilíbrio mental de que se fazia portador, continuava em rude tom de voz:
- Quem disse que malfadada
revolução dos franceses terá reflexos no Brasil? A loucura de um povo não pode
alastrar-se a toda a Terra...Os privilégios dos nobres são invioláveis! Vêm dos
reis, que são indiscutivelmente os escolhidos de Deus! Defenderemos nossas
prerrogativas, exterminando a propaganda dos rebeldes e regicidas! Venderei
meus escravos alfabetizados, nada de panfletos e comentários da rebelião. Como
produzir sem o chicote no lombo? Cativos são cativos, senhores são senhores. E
todos os fujões e criminosos conhecerão o peso dos meus braços... Matarei sem
piedade. Cinco troncos de suplício! Cinco troncos! Eis aquilo de que necessito
para refazer a nossa tranqüilidade.
- Foi um fazendeiro desumano
- esclareceu nosso orientador amigo. - Desencarnou nos últimos dias do século
XVIII, mas ainda conserva a mente estagnada na concha do próprio egoísmo. Nada
percebe, por enquanto, senão os quadros interiores, criados por ele mesmo,
constando de escravos, dinheiro e lucros da antiga propriedade rural em que
enterrou o pensamento, convertendo-se hoje em vampiro inconsciente de almas reencarnadas
que lhe foram queridas no Brasil colonial. Com todo o respeito que devemos à
fraternidade, podemos dizer que ele nada mais fora que desapiedado algoz dos
infortunados cativos que lhe caíam sob o guante de ferro. Detentor de
vastíssimo latifúndio, possuía consigo larga região de servidores que lhe
conheceram, de perto, a tirania e a perversidade.
Valendo-me da pausa
espontânea, fitei o rosto do triste recém-chegado, com mais atenção,
reconhecendo que os seus olhos, embora móveis quanto os de um felino, estavam
vidrados, mortos...
Ia apontar para aquelas
órbitas inexpressivas, quando o instrutor, adivinhando-me o impulso,
acrescentou:
- Odiava os trabalhadores que
lhe fugiam às garras e quando conseguia arrebatá-los ao quilombo, não somente
os algemava aos troncos de martírio, mas queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à
cegueira, para escarmento das senzalas. Alguns dos raros quilombolas que
resistiam à morte eram sentenciados, depois de cegos, às mandíbulas de cães
bravios, de cuja sanha não conseguiam escapar. Com semelhante sistema de
repressão, instalou o terror em derredor dos seus passos, granjeando, então,
fama e riqueza. Contudo, veio a jornada inevitável do túmulo e, nessa fase
nova, não encontrou senão desafetos, a se levantarem, junto dele, na feição de
temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda lhe haviam desculpado as
ofensas, mas outras não conseguiram a força para o perdão espontâneo e
converteram-se em vingadores do passado a lhe cumularem o espírito de aflitivo
pavor. Emaranhado nas teias da usura e fazendo do ouro o único poder em que
acreditava, nem de leve se sentiu transportado de um modo de vida para outro,
através da morte. Crê-se num cárcere de trevas, atormentado pelos escravos,
prisioneiro das próprias vítimas. Vive, assim, entre a desesperação e o
remorso. Martirizado pelas reminiscências das flagelações que decretava e
hipnotizado pelos algozes de agora, dos quais no pretérito foi verdugo, vê-se
reduzido a extrema cegueira, por se lhe desequilibrarem no corpo espiritual as
faculdades da visão.
Enquanto se nos alongava o
entendimento, o infeliz foi situado junto de Dona Celina.
A medida impressionou-me
desfavoravelmente.
Logo Dona Celina, o melhor
instrumento da casa, é quem deveria acolher o indesejável comunicante?!
Reparei-lhe a luminosa
auréola, contrastando com a vestimenta pestilencial do forasteiro, e deixei-me
avassalar por incoercível temor.
Semelhante providência não
seria o mesmo que entregar uma harpa delicada às patas de uma fera?
Áulus, porém, deu-se pressa
em explicar-nos:
- Acalmem-se. O amigo
dementado penetrou o templo com a supervisão e o consentimento dos mentores da
casa. Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos temê-los. Recuam
instintivamente ante a luz espiritual que os fustiga ou desintegra. É por isso
que cada médium possui ambiente próprio e cada assembléia se caracteriza por
uma corrente magnética particular de preservação e defesa. Nuvens infecciosas
da Terra são diariamente extintas ou combatidas pelas irradiações solares, e formações
fluídica, inquietantes, a todo momento são aniquiladas ou varridas do Planeta
pelas energias superiores do Espírito. Os raios luminosos da mente orientada
para o bem incidem sobre as construções do mal, à feição de descargas
elétricas. E, compreendendo-se que mais ajuda aquele que mais pode, nossa irmã
Celina é a companheira ideal para o auxílio desta hora.
Indicando-a, exclamou:
- Observemos.
A médium desvencilhou-se do
corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e conduziu consigo
a aura brilhante de que se coroava.
Clementino não teve
necessidade de socorrê-la. Parecia afeita àquele gênero de tarefa. Ainda assim,
o condutor do grupo amparou-a, solícito.
A nobre senhora fitou o
desesperado visitante manifesta simpatia e abriu-lhe os braços, auxiliando-o a
senhorear o veículo físico, então em sombra.
Qual se fora atraído por
vigoroso imã, o sofredor arrojou-se sobre a organização física da médium,
colocando-se a ela, instintivamente.
Se Eugênia revelara-se
benemérita enfermeira, Dona Celina surgia aos nossos olhos por abnegada
mãezinha, tal a devoção afetiva para com o hóspede infortunado.
Dela partiam fios brilhantes
a envolvê-lo inteiramente e o recém-chegado, em vista disso, não obstante
senhor de si, demonstrava-se criteriosamente controlado.
Assemelhava-se a um peixe em
furiosa reação, entre os estreitos limites de um recipiente que, em vão,
procurava dilacerar.
Projetava de si estiletes de
treva, que se fundiam na luz em que Celina-alma o rodeava, delicada.
Tentava gritar impropérios,
mas debalde.
A médium era um instrumento
passivo no exterior, entretanto, nas profundezas do ser, mostrava as qualidades
morais positivas que lhe eram conquista inalienável, impedindo aquele irmão de
qualquer manifestação menos digna.
- Eu sou José Maria... -
clamava o visitante, irritadíssimo, enfileirando outros nomes com o evidente
intuito de lançar importância sobre a sua origem.
Amontoava reclamações,
deitava reprimendas e revoltava-se exasperado, contudo, percebi que não usava
palavras semelhantes às que proferira junto de nós. Achava-se como que
manietado, vencido, embora prosseguisse rude e áspero.
Aparecia tão completamente
implantado na organização fisiológica da medianeira, tão espontâneo e tão
natural, que não sopitei as perguntas a me escorrerem céleres do pensamento.
A mediunidade falante em
Celina era diversa? Eugênia e ela se haviam desligado da veste carnal, durante
o trabalho... Por que a primeira se mantivera preocupada, qual enfermeira
inquieta, enquanto que a segunda parecia devotada tutora do irmão dementado,
seguindo-o com cuidados de mãe? Por que numa delas a expectação atormentada e
na outra a serena confiança?
Desculpando-nos a condição de
aprendizes, Áulus passou a esclarecer-nos, enquanto Clementino e Raul Silva
amparavam o comunicante, através de orações e frases renovadoras de incentivo
ao bem.
- Celina - explicou, bondoso
- é sonâmbula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se processa sem necessidade
de ligação da corrente nervosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o
ocupa. A espontaneidade dela é tamanha na cessão de seus recursos às entidades
necessitadas de socorro e carinho, que não tem qualquer dificuldade par
desligar-se de maneira automática do campo sensório, perdendo provisoriamente o
contacto com os centros motores da vida cerebral. Sua posição medianímica é de
extrema passividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si,
na exteriorização da própria personalidade. Isso, porém, não indica que a nossa
irmã deva estar ausente ou irresponsável. Junto do corpo que lhe pertence, age
na condição de mãe generosa, auxiliando o sofredor que por ela se exprime qual
se fora frágil protegido de sua bondade. Atraiu-o a si, exercendo um sacrifício
voluntário, que lhe é doce ao coração fraterno, e José Maria, desvairado e
desditoso, imensamente inferior a ela, não lhe pôde resistir. Permanece, assim,
agressivo tanto quanto é, mas vê-se controlado em suas menores expressões,
porque a mente superior subordina as que se lhe situam à retaguarda, nos
domínios do espírito. É por essa razão que o hóspede experimenta com rigor o
domínio afetuoso da missionária que lhe dispensa amparo assistencial. Impelido
a obedecer-lhe, recebe as energias mentais constringentes que o obrigam a
sustentar-se em respeitosa atitude, não obstante revoltado como se encontra.
Diante da pausa que se fazia
natural, reparamos que Silva conseguia franco progresso na doutrinação.
O ex-tirano rural começava a
assimilar algumas réstias de luz.
Hilário, contudo, provocou a
continuidade da lição, perguntando:
- Embora seja preciosa
auxiliar, como vemos, não se lembrará Dona Celina das palavras que o visitante
pronuncia por seu intermédio?
- Se quiser, poderá
recordá-las com esforço, mas na situação em que se reconhece, não vê qualquer
vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.
- Indubitavelmente - ponderou
meu colega - observamos singular diferença entre as duas médiuns que caíram em transe...
Tenho a idéia de que, na psicofonia consciente, Dona Eugênia exercia um
controle mais direto sobre o hóspede que lhe utilizava os recursos, ao passo
que Dona Celina, embora vigiando o companheiro que se comunica, deixa-o mais à
vontade, mais livre... Caso não fosse Dona Celina a trabalhadora hábil, capaz
de intervir a tempo, em qualquer circunstância menos agradável, não seria de
preferir as faculdades de Dona Eugênia?
- Sim, Hilário, você tem
razão. O sonambulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos
fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. A psicofonia
inconsciente naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria
defesa, pode levar à possessão, sempre nociva, e que, por isso, apenas se
evidencia integral nos obsessos que se renderam às forças vampirizantes.
Hilário refletiu um momento e
tornou a considerar:
- Aqui, vemos a médium fora
do vaso físico, dominando mentalmente a entidade que lhe é inferior... Mas... e
se fosse o contrário? Se tivéssemos aqui uma entidade intelectualmente superior
senhoreando mentalmente a médium?
- Nesse caso - redargüiu o
paciente interlocutor -, Celina seria naturalmente controlada. Se o comunicante
fosse, nessa hipótese, uma inteligência degenerada e perversa, a fiscalização
correria por conta dos mentores da casa e, em se tratando de um mensageiro com
elevado patrimônio de conhecimento e virtude, a médium apassivar-se-ia com
satisfação, porquanto lhe aproveitaria as vantagens da presença, tal como o rio
se beneficia com as chuvas que caem do alto.
O instrutor ia continuar, mas
Clementino solicitou-lhe o concurso para a remoção de José Maria que, algo
renovado, principiava a aceitar o serviço da prece, chegando mesmo a atingir a
felicidade de chorar.
Nosso orientador passou a
contribuir na assistência ao visitante, que foi novamente entregue ao amigo
paternal que o trazia, a fim de internar-se em organização socorrista distante.
Sob a guarda de venerando
amigo, que mais se nos afigurava um nume apostolar, pobre Espírito dementado
varou o recinto.
Lembrava um fidalgo antigo,
repentinamente arrancado ao subsolo, porque os fluidos que o revestiam era
verdadeira massa escura e viscosa, cobrindo-lhe a roupagem e despedindo
nauseabundas emanações.
Nenhuma das entidades
sofredoras que se acotovelavam à frente exibia tão horrenda fácies.
Aqui e ali, nos variados
semblantes a se comprimirem no lugar reservado a irmãos felizes, as máscaras de
sofrimento eram suavizadas por sinais inequívocos de arrependimento, fé,
humildade, esperança...
Mas naquele rosto patibular,
parecendo emergir de um lençol de lama, aliavam-se a frieza e a malignidade, a
astúcia e o endurecimento.
Ante a expressão com que
surgia de inopino, os próprios Espíritos perturbados recuaram receosos.
Na destra, o estranho
recém-chegado trazia um azorrangue que tentava estalar, ao mesmo tempo que
proferia estrepitosas exclamações.
-Quem me fez chegar até aqui,
contra a minha vontade? - bramia, semi-afônico. - Covardes! Por que me
segregaram assim? Onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Infames!
Pagar-me-ão caro os ultrajes sofridos!...
E evidenciando o extremo
desequilíbrio mental de que se fazia portador, continuava em rude tom de voz:
- Quem disse que malfadada
revolução dos franceses terá reflexos no Brasil? A loucura de um povo não pode
alastrar-se a toda a Terra...Os privilégios dos nobres são invioláveis! Vêm dos
reis, que são indiscutivelmente os escolhidos de Deus! Defenderemos nossas
prerrogativas, exterminando a propaganda dos rebeldes e regicidas! Venderei
meus escravos alfabetizados, nada de panfletos e comentários da rebelião. Como
produzir sem o chicote no lombo? Cativos são cativos, senhores são senhores. E
todos os fujões e criminosos conhecerão o peso dos meus braços... Matarei sem
piedade. Cinco troncos de suplício! Cinco troncos! Eis aquilo de que necessito
para refazer a nossa tranqüilidade.
- Foi um fazendeiro desumano
- esclareceu nosso orientador amigo. - Desencarnou nos últimos dias do século
XVIII, mas ainda conserva a mente estagnada na concha do próprio egoísmo. Nada
percebe, por enquanto, senão os quadros interiores, criados por ele mesmo,
constando de escravos, dinheiro e lucros da antiga propriedade rural em que
enterrou o pensamento, convertendo-se hoje em vampiro inconsciente de almas
reencarnadas que lhe foram queridas no Brasil colonial. Com todo o respeito que
devemos à fraternidade, podemos dizer que ele nada mais fora que desapiedado
algoz dos infortunados cativos que lhe caíam sob o guante de ferro. Detentor de
vastíssimo latifúndio, possuía consigo larga região de servidores que lhe
conheceram, de perto, a tirania e a perversidade.
Valendo-me da pausa
espontânea, fitei o rosto do triste recém-chegado, com mais atenção,
reconhecendo que os seus olhos, embora móveis quanto os de um felino, estavam
vidrados, mortos...
Ia apontar para aquelas
órbitas inexpressivas, quando o instrutor, adivinhando-me o impulso,
acrescentou:
- Odiava os trabalhadores que
lhe fugiam às garras e quando conseguia arrebatá-los ao quilombo, não somente
os algemava aos troncos de martírio, mas queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à
cegueira, para escarmento das senzalas. Alguns dos raros quilombolas que
resistiam à morte eram sentenciados, depois de cegos, às mandíbulas de cães
bravios, de cuja sanha não conseguiam escapar. Com semelhante sistema de
repressão, instalou o terror em derredor dos seus passos, granjeando, então,
fama e riqueza. Contudo, veio a jornada inevitável do túmulo e, nessa fase
nova, não encontrou senão desafetos, a se levantarem, junto dele, na feição de
temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda lhe haviam desculpado as
ofensas, mas outras não conseguiram a força para o perdão espontâneo e
converteram-se em vingadores do passado a lhe cumularem o espírito de aflitivo
pavor. Emaranhado nas teias da usura e fazendo do ouro o único poder em que
acreditava, nem de leve se sentiu transportado de um modo de vida para outro,
através da morte. Crê-se num cárcere de trevas, atormentado pelos escravos,
prisioneiro das próprias vítimas. Vive, assim, entre a desesperação e o
remorso. Martirizado pelas reminiscências das flagelações que decretava e
hipnotizado pelos algozes de agora, dos quais no pretérito foi verdugo, vê-se
reduzido a extrema cegueira, por se lhe desequilibrarem no corpo espiritual as
faculdades da visão.
Enquanto se nos alongava o
entendimento, o infeliz foi situado junto de Dona Celina.
A medida impressionou-me
desfavoravelmente.
Logo Dona Celina, o melhor
instrumento da casa, é quem deveria acolher o indesejável comunicante?!
Reparei-lhe a luminosa
auréola, contrastando com a vestimenta pestilencial do forasteiro, e deixei-me
avassalar por incoercível temor.
Semelhante providência não
seria o mesmo que entregar uma harpa delicada às patas de uma fera?
Áulus, porém, deu-se pressa
em explicar-nos:
- Acalmem-se. O amigo
dementado penetrou o templo com a supervisão e o consentimento dos mentores da
casa. Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos temê-los. Recuam
instintivamente ante a luz espiritual que os fustiga ou desintegra. É por isso
que cada médium possui ambiente próprio e cada assembléia se caracteriza por
uma corrente magnética particular de preservação e defesa. Nuvens infecciosas
da Terra são diariamente extintas ou combatidas pelas irradiações solares, e
formações fluídica, inquietantes, a todo momento são aniquiladas ou varridas do
Planeta pelas energias superiores do Espírito. Os raios luminosos da mente
orientada para o bem incidem sobre as construções do mal, à feição de descargas
elétricas. E, compreendendo-se que mais ajuda aquele que mais pode, nossa irmã
Celina é a companheira ideal para o auxílio desta hora.
Indicando-a, exclamou:
- Observemos.
A médium desvencilhou-se do
corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e conduziu consigo
a aura brilhante de que se coroava.
Clementino não teve
necessidade de socorrê-la. Parecia afeita àquele gênero de tarefa. Ainda assim,
o condutor do grupo amparou-a, solícito.
A nobre senhora fitou o
desesperado visitante manifesta simpatia e abriu-lhe os braços, auxiliando-o a
senhorear o veículo físico, então em sombra.
Qual se fora atraído por
vigoroso imã, o sofredor arrojou-se sobre a organização física da médium,
colocando-se a ela, instintivamente.
Se Eugênia revelara-se benemérita
enfermeira, Dona Celina surgia aos nossos olhos por abnegada mãezinha, tal a
devoção afetiva para com o hóspede infortunado.
Dela partiam fios brilhantes
a envolvê-lo inteiramente e o recém-chegado, em vista disso, não obstante
senhor de si, demonstrava-se criteriosamente controlado.
Assemelhava-se a um peixe em
furiosa reação, entre os estreitos limites de um recipiente que, em vão,
procurava dilacerar.
Projetava de si estiletes de
treva, que se fundiam na luz em que Celina-alma o rodeava, delicada.
Tentava gritar impropérios,
mas debalde.
A médium era um instrumento
passivo no exterior, entretanto, nas profundezas do ser, mostrava as qualidades
morais positivas que lhe eram conquista inalienável, impedindo aquele irmão de
qualquer manifestação menos digna.
- Eu sou José Maria... -
clamava o visitante, irritadíssimo, enfileirando outros nomes com o evidente
intuito de lançar importância sobre a sua origem.
Amontoava reclamações,
deitava reprimendas e revoltava-se exasperado, contudo, percebi que não usava
palavras semelhantes às que proferira junto de nós. Achava-se como que
manietado, vencido, embora prosseguisse rude e áspero.
Aparecia tão completamente
implantado na organização fisiológica da medianeira, tão espontâneo e tão
natural, que não sopitei as perguntas a me escorrerem céleres do pensamento.
A mediunidade falante em
Celina era diversa? Eugênia e ela se haviam desligado da veste carnal, durante
o trabalho... Por que a primeira se mantivera preocupada, qual enfermeira
inquieta, enquanto que a segunda parecia devotada tutora do irmão dementado,
seguindo-o com cuidados de mãe? Por que numa delas a expectação atormentada e na
outra a serena confiança?
Desculpando-nos a condição de
aprendizes, Áulus passou a esclarecer-nos, enquanto Clementino e Raul Silva
amparavam o comunicante, através de orações e frases renovadoras de incentivo
ao bem.
- Celina - explicou, bondoso
- é sonâmbula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se processa sem necessidade
de ligação da corrente nervosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o
ocupa. A espontaneidade dela é tamanha na cessão de seus recursos às entidades
necessitadas de socorro e carinho, que não tem qualquer dificuldade par
desligar-se de maneira automática do campo sensório, perdendo provisoriamente o
contacto com os centros motores da vida cerebral. Sua posição medianímica é de
extrema passividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si,
na exteriorização da própria personalidade. Isso, porém, não indica que a nossa
irmã deva estar ausente ou irresponsável. Junto do corpo que lhe pertence, age
na condição de mãe generosa, auxiliando o sofredor que por ela se exprime qual
se fora frágil protegido de sua bondade. Atraiu-o a si, exercendo um sacrifício
voluntário, que lhe é doce ao coração fraterno, e José Maria, desvairado e
desditoso, imensamente inferior a ela, não lhe pôde resistir. Permanece, assim,
agressivo tanto quanto é, mas vê-se controlado em suas menores expressões,
porque a mente superior subordina as que se lhe situam à retaguarda, nos
domínios do espírito. É por essa razão que o hóspede experimenta com rigor o
domínio afetuoso da missionária que lhe dispensa amparo assistencial. Impelido
a obedecer-lhe, recebe as energias mentais constringentes que o obrigam a
sustentar-se em respeitosa atitude, não obstante revoltado como se encontra.
Diante da pausa que se fazia
natural, reparamos que Silva conseguia franco progresso na doutrinação.
O ex-tirano rural começava a
assimilar algumas réstias de luz.
Hilário, contudo, provocou a
continuidade da lição, perguntando:
- Embora seja preciosa
auxiliar, como vemos, não se lembrará Dona Celina das palavras que o visitante
pronuncia por seu intermédio?
- Se quiser, poderá
recordá-las com esforço, mas na situação em que se reconhece, não vê qualquer
vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.
- Indubitavelmente - ponderou
meu colega - observamos singular diferença entre as duas médiuns que caíram em
transe... Tenho a idéia de que, na psicofonia consciente, Dona Eugênia exercia
um controle mais direto sobre o hóspede que lhe utilizava os recursos, ao passo
que Dona Celina, embora vigiando o companheiro que se comunica, deixa-o mais à
vontade, mais livre... Caso não fosse Dona Celina a trabalhadora hábil, capaz
de intervir a tempo, em qualquer circunstância menos agradável, não seria de
preferir as faculdades de Dona Eugênia?
- Sim, Hilário, você tem
razão. O sonambulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos
fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. A psicofonia
inconsciente naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria
defesa, pode levar à possessão, sempre nociva, e que, por isso, apenas se
evidencia integral nos obsessos que se renderam às forças vampirizantes.
Hilário refletiu um momento e
tornou a considerar:
- Aqui, vemos a médium fora
do vaso físico, dominando mentalmente a entidade que lhe é inferior... Mas... e
se fosse o contrário? Se tivéssemos aqui uma entidade intelectualmente superior
senhoreando mentalmente a médium?
- Nesse caso - redargüiu o
paciente interlocutor -, Celina seria naturalmente controlada. Se o comunicante
fosse, nessa hipótese, uma inteligência degenerada e perversa, a fiscalização
correria por conta dos mentores da casa e, em se tratando de um mensageiro com
elevado patrimônio de conhecimento e virtude, a médium apassivar-se-ia com
satisfação, porquanto lhe aproveitaria as vantagens da presença, tal como o rio
se beneficia com as chuvas que caem do alto.
O instrutor ia continuar, mas
Clementino solicitou-lhe o concurso para a remoção de José Maria que, algo
renovado, principiava a aceitar o serviço da prece, chegando mesmo a atingir a
felicidade de chorar.
Nosso orientador passou a
contribuir na assistência ao visitante, que foi novamente entregue ao amigo
paternal que o trazia, a fim de internar-se em organização socorrista distante.
Livro: "Nos Domínios da Mediunidade" -
Francisco Candido Xavier - André Luiz.