2.7.23

A Triste Partida

Ao me debruçar no cancioneiro popular nordestino, eis que me lembro da belíssima canção da " A Triste Partida". Ela expressa uma verdade que é dura de ser constatada. 
Setembro passou
Oitubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós
(Meu Deus, meu Deus)
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
(Ai, ai, ai, ai)
Viver com a secura da caatinga, viver sem água numa terra árida é uma realidade de grande sofrimento. Ver o tempo passar e nada de chuva, nada de água, nada de alento.
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal
(Meu Deus, meu Deus)
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
(Ai, ai, ai, ai)
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
(Meu Deus, meu Deus)
Nessa vermelhidão do meu sertão, o sol causticante, a terra seca, somente a esperança para manter de pé um pobre sertanejo. A esperança que ao menos na data natalina do Cristo pingue um pouco d’água em suas terras para se alimentar, ao mínimo que seja. 
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem
(Ai, ai, ai, ai)
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro
Depois fevereiro
E o mesmo verão
(Meu Deus, meu Deus)
Nem as chuvas de verão chegaram. Que solidão! Que tristeza! Apelar para a sorte, mas que sorte, o sol se mantém firme no horizonte. O que fazer? 
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz isso é castigo
Não chove mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
(Ai, ai, ai, ai)
O apelo santo ao pai de Jesus na esperança de que ao menos um milhozinho seja possível plantar, mas nada! O sol inclemente não dá trégua. 
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
(Meu Deus, meu Deus)
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamos a São Palo
Viver ou morrer
(Ai, ai, ai, ai)
Nós vamos a São Palo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
(Meu Deus, meu Deus)
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Ai, pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
(Ai, ai, ai, ai)
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
(Meu Deus, meu Deus)
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
(Ai, ai, ai, ai)
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
(Meu Deus, meu Deus)
A seca terrívi
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natá
(Ai, ai, ai, ai)
Vende tudo o que tem e o que não tem, mas o que ele vende mesmo – e a preço de pataca – é a sua esperança e imagina que em São Paulo, a terra da prosperidade, a sua vida, finamente, vai mudar. 
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
(Meu Deus, meu Deus)
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
(Ai, ai, ai, ai)
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
(Meu Deus, meu Deus)
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Exclama a dizer
(Ai, ai, ai, ai)
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
(Meu Deus, meu Deus)
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
(Ai, ai, ai, ai)
E a linda pequena
Tremendo de medo
Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?
(Meu Deus, meu Deus)
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
(Ai, ai, ai, ai)
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo azul
(Meu Deus, meu Deus)
O pai, pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
(Ai, ai, ai, ai)
Você não planta somente sementes na Terra, o sertanejo planta toda a sua vida no seu pedaço de chão seco. Deixar tudo para trás provoca imensa dor no seu coração. É a última cartada, deixando as lembranças na estrada. É virar a sua vida na cidade grande para compensar toda a vida pesarosa. 
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
(Meu Deus, meu Deus)
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
(Ai, ai, ai, ai)
Trabaia dois ano
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
(Ai, ai, ai, ai)
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
(Meu Deus, meu Deus)
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos óio
Começa a cair
(Ai, ai, ai, ai)
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
(Meu Deus, meu Deus)
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
À lama e o baú
(Meu Deus, meu Deus)
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Na vida nova, a esperança novamente disseca suas lágrimas. Seja porque constata que não era nada daquilo que pensava encontrar, seja porque caiu numa armadilha sem fim, seja porque a sua casinha e seu antigo pedaço de chão não sai de seu peito. 
Eu sei que essa realidade diminuiu, mas não são poucos aqueles que saem da sua casa para tentar uma sorte melhor nas terras distantes. 
A pergunta que se deve fazer é até quando vamos deixar os nossos nordestinos, os nossos sertanejos, partirem da sua terra natal em busca de guarida em outros lugares distantes. 
Até quando as autoridades constituídas ficarão de costas ao sofrimento desses retirantes diante da sua pobreza total. 
Eu sei – e vejo isso com muitos bons olhos – que aqui e acolá estão aparecendo oportunidades de sobrevivência local e, em alguns casos, até se gera muita prosperidade. Torço que estas experiências de desenvolvimento econômico e social deem certo e não precisemos novamente recorrer ao poeta popular para cantar as nossas mazelas sociais. 
Se toda partida é motivo de tristeza, tirar o sertanejo do seu pedacinho de chão é como morte em vida. Morre-se cada dia um tantinho. A cabeça pode até estar no novo trabalho quando encontra, mas seu coração estará definitivamente na sua casinha simples e na felicidade que tinha em estar no lugar onde nasceu e cresceu. 
Que essa não tarde a mudar. 
Fiquem com Deus! 
Helder Camara - Blog Novas Utopias.

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