4.3.24

Somos Pobres Criaturas

Há filmes que me impactaram fortemente devido a sua mensagem de profunda reflexão. São os casos de “Ensaio sobre a Cegueira” (2008), dirigido por Fernando Meirelles, baseado a obra homônima de José Saramago; e “Birdman – A Inesperada Virtude da Ignorância” (2015), dirigido por Alejandro Inárritu. Agora aparece outro desses filmes para se assistir sempre: “Pobres Criaturas” (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, a partir do roteiro de Tony McNamara, adaptado da obra homônima de Alasdair Gray.
O enredo é centrado na personagem Bella Baxter (Emma Stone) que é trazida de volta à vida pelo anatomista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). Na verdade, o corpo é da sua mãe que se suicidou saltando de uma ponte. O médico retira a criança e “fantasticamente” introduz no seu cérebro na cabeça materna. Extremamente curiosa, a imatura Bella anseia aprender mais sobre o mundo e é quando o Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) propõe satisfazer seu desejo. A partir daí, se desenrola toda a trama.
A leitura aparente dos fatos narrados no filme é o que predomina na análise da maioria dos críticos – e isto pode ser facilmente encontrado nos vídeos dos comentaristas de cinema pelo Youtube -, mas ouso tentar interpretar a estória pelos olhos da Psicologia Transpessoal e da Filosofia, mesmo sem ser um especialista destes saberes.
Pobres Criaturas é uma narrativa metafórica da realidade existencial de cada ser humano e da humanidade.
Entre as leituras possíveis, uma vai do caminho da bestialidade a santificação, da ignorância a sabedora, do instinto ao sentimento.
Bella Baxter é o protótipo do ser humano na sua primitividade existencial quando a tudo ignora e vive na pureza das suas experiências primevas. Tudo passa a ser interessante e sem as amarras da moral. Implicitamente, o roteiro vai ao encontro das ideias de Friedrich Nietzsche fazendo um questionamento do establishment. Não se trata da defesa de um sistema sem valores, mas da crítica aos valores hipócritas que norteiam a convivência social.
Para Bella, o ser humano se relaciona com o mundo como uma grande brincadeira, o que torna a vida mais divertida. Sem compromisso com o certo ou o errado, ela experimenta cada oportunidade como uma novidade a ser testada e avaliada se é agradável ou não.
Para os olhos da sociedade que a cerca, presa aos costumes sociais, as atitudes de Bella Baxter são reprováveis, mesmo para alguém que se afirmava de ‘cabeça aberta’ como seu amante Duncan Wedderburn.
A delícia do prazer sexual é, neste contexto, a experiência mais excitante da vida de Bella. A descoberta das possibilidades que o corpo lhe proporciona domina os interesses desta sua fase de experimentações. Uma existência de profunda satisfação dos instintos. E não será assim com a maioria de nós?
Nesta parte do filme, o roteirista explora com intensidade a perspectiva freudiana em que a libido passa a ser a grande energia motivacional dos passos da nossa protagonista. A explosão da vida pela satisfação do desejo insaciável do animal que ainda mora nas entranhas do ser humano.
Bella Bexter é livre e exerce esta condição na sua plenitude até ser mexida pela sensibilidade.
A dor do outro que vive na miséria e no sofrimento a faz chorar copiosamente. Sua alma se despedaça diante da constatação da dor do outro. Algo que muito bem se aplica com a experiência de despertamento de certo jovem nepalense no século VI a.C., Sidarta Gautama, que, refletindo sobre a adversidade da doença, do envelhecimento e da morte, passou a dedicar a sua vida na tentativa de entender e superar este destino inevitável.
Jung definiria esse fenômeno como a conquista da consciência:
É ao crescimento da consciência que devemos a existência de problemas; eles são o presente de grego da civilização. É o afastamento do homem em relação aos instintos e sua oposição a eles que cria a consciência.¹
Empatia, compaixão, solidariedade, eis o novo rol de preocupações de Bella Baxter. No seu exercício de desenvolvimento humano, ela avança do autoconhecimento para a etapa da autotransformação.
Joanna de Ângelis assevera que 
“o maior tesouro (do ser) é a identificação do Eu com todos os seus conteúdos vitais que conduz, aquisição que somente é lograda mediante ingentes sacrifícios”².
É isto que Bella se propõe durante o filme e paga para ver até onde vai a sua origem, mesmo se sujeitando a novamente conviver com seu antigo marido e algoz que, na realidade, agora representava seu pai.
Nesta fase de crescimento da sensibilidade arrefecem-se as forças primitivas e, em seu lugar, ganha vez, pouco a pouco, outro tipo de prazer: a amabilidade.
A amabilidade demonstrada a seu pai estrutural Godwin Baxter, a sua antiga colega de prostíbulo Toinette (Suzy Bemba) e ao seu pesquisador e prometido marido Max McCandles (Ramy Youssef).
Bella chega finalmente ao patamar dos sentimentos.
Seu ego criança se torna adulto. Sua capacidade de aprendizagem e reinvenção permite a Bella escolher seus próprios caminhos sem a ansiedade do passado. Ancorada agora numa consciência serena, ela decide seguir o legado de medicina de seu criador frankensteiniano.
O interessante dessa trajetória progressiva de Bella Baxter é que ela não precisou, como todos nós, criar máscaras para se esconder, mostrando-se sempre quem ela realmente era, sem retoques. Este traço é marcante e incomoda quem assiste ao filme exatamente porque representa uma postura antagônica àquela que todos nós adotamos no teatro da vida e que gostaríamos, no fundo, de imitá-la.
Bella Baxter atravessa todo o filme enfrentando a sua falibilidade e vulnerabilidade. E foi vitoriosa.
Bella Baxter, efetivamente, vivia e não tinha a vergonha de ser feliz. Desse ponto de vista, ouso afirmar que nós é que somos pobres criaturas e não ela.
Somos pobres criaturas porque não conseguimos nos desvencilhar dos nossos medos e angústias.
Somos pobres criaturas porque não conseguimos nos desamarrar dos nossos preconceitos e arrogância.
Somos pobres criaturas porque não conseguimos nos livrar do nosso egoísmo e do consumismo alienante.
Somos pobres criaturas, enfim, porque não conseguimos nos libertar da condição material para a nossa essência espiritual.
Bela estória que vem nos ensinar que somente nos transformaremos em gente de verdade quando vencermos os nossos monstros interiores.
Carlos Pereira - Blog de Carlos Pereira 
¹JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.
² JOANNA DE ÂNGELIS (Espírito). O Despertar do Espírito. Psicografado por Divaldo Pereira Franco. Salvador/BA: Livraria Espírita Alvorada, 2000.

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